O Corpo que é fonte de santidade e de empenho social
Sabemos bem porque estamos aqui: porque num dia de quinta-feira, como hoje, depois de vincar fortemente o mandamento novo do amor no gesto do lava-pés e de instruir os discípulos com a sua Palavra, tal como fez agora connosco por meio destas leituras, o Senhor Jesus celebrou a Eucaristia e ordenou-lhes: “Fazei isto em memória de mim”. Incutiu-lhes o dever de assiduidade a este augusto Sacramento, ordem a que a Igreja foi sempre fidelíssima: primeiro, celebrando-o no “primeiro dia da semana”, gesto sublime com o qual, ao longo de dois mil anos, assinalou o “Dia do Senhor” e, depois, permitindo que o mesmo sacramento se renovasse todos os dias, especialmente por alturas dos grandes acontecimentos da vida, tais como no Crisma, na profissão religiosa, no dia do Matrimónio, por alturas do funeral, etc.
Tendo-se, portanto, tornado habitual –mas jamais vulgar!- compreende-se que a comunidade da fé, desde há muito, escolhesse este dia para, de forma soleníssima, demonstrar todo o seu apreço por este mistério de amor, fonte de santidade e de empenho social. Este é, de facto, o dia dos cânticos, da música, dos adornos, das bandeiras, das opas, até de alguma ostentação na custódia e outros vasos sagrados. Dia da alegria, da luz, das flores e da festa. Porque tudo isso constitui forma de adorar e proclamar. Mas também, de dizer aos mais amortecidos na piedade, aos que raramente frequentam a Missa de Domingo e aos afastados, que é possível e urgente vencer essa epidemia da indiferença e que só a Eucaristia fortalece o organismo pessoal e eclesial e garante a imunidade contra o vírus de uma existência materialista, mediante as virtudes, tão cristãs, da fé, esperança e caridade.
Vimos de um longo e muito sofrido “jejum eucarístico”. Rigorosamente falando, apenas estamos a sair dele, pois as condições de alimentação do Corpo e Sangue do Senhor mal foram suavizadas. Os cristãos de fé viva suportaram com muita dificuldade este tempo sem Eucaristia. Experimentaram a tristeza de não puder aproximar-se do Santíssimo Sacramento precisamente quando, sob o ponto de vista da fé e da psicologia, dele mais necessitavam. Viveram a melancolia de saberem que muitíssimas crianças O não receberiam na Primeira Comunhão, muitos doentes não O poderiam comungar com a regularidade de sempre, porventura, alguns moribundos terão regressado ao seio do Pai sem a companhia do Viático e que foram canceladas as tradicionais festas em que o centro é sempre a solene celebração da Eucaristia. Mesmo agora, não podemos fazer as majestosas procissões e levar o Santíssimo a passar por cima dos nossos artísticos tapetes de flores, expressão do contentamento de quem, para demonstrar a alegria de receber o maior Amigo, lhe oferece o mais belo de que a natureza dispõe.
Mas será que todos os cristãos sentem esse desgosto? Todos nutrem estima e grande afeto por este augusto Sacramento? Infelizmente, não. Temos de reconhecer uma certa desafeição no que à Eucaristia e ao Domingo diz respeito. Na prática, uma desafeição ao Senhor e à fé. O que, aliás, já não é novo. A breve passagem do Evangelho que escutamos referia apenas a pregação doutrinal que Jesus fez à multidão. Mas, no mesmo capítulo, logo a seguir, diz-se que começaram os abandonos, mesmo entre os que tinham sido alimentados pelo pão e pelo peixe do milagre da multiplicação: alguns começaram a dizer que esse discurso era duro, insuportável, e deixaram de seguir Jesus, a ponto de Ele mesmo ter perguntado aos Apóstolos se também queriam fazer como os outros, voltar as costas e ir-se embora. Sabemos o que aconteceu. Pedro, em nome dos outros onze faz aquela profissão de fé e de adesão: “E para onde iríamos nós, Senhor? Só tu tens palavras de vida eterna”.
Pela intuição afetiva e pelo dom do Espírito que trabalhava o seu coração, Pedro deu-se conta da mesma realidade que também nós experimentamos: mesmo que, por vezes, o não vejamos claramente, só em Jesus se cumprem as nossas expectativas; não obstante o desânimo e a eventual revolta pelo facto de as coisas não acontecerem como desejaríamos, acabamos sempre por experimentar a presença consoladora do nosso Deus; no negrume da aflição e com o caminho feito no medo e às apalpadelas, sentimos que só Cristo é a luz que ilumina e destrói todas as obscuridades; no meio do sofrimento físico, psicológico, económico e familiar, só o Salvador se nos apresenta como fonte de esperança e certeza de felicidade.
Caros cristãos, nos momentos de aflição e de angústia, quando o mundo grita por socorro e parece que Deus não acode com a rapidez com que manobramos um interruptor para acender uma lâmpada elétrica, a pergunta que muitos fazem é aquela a que o Papa Bento XVI respondeu no Campo de Concentração de Auschwitz: “Onde está Deus?”. A resposta só pode ser uma: está na sua Palavra, na fé, nos Sacramentos: Por consequência, na vida da Igreja. E onde tem estado a Igreja? Aqui, o melhor é que sejam os outros a responder. Perguntem aos pobres e esfomeados, aos doentes e aos que estão de luto, aos velhos abandonados e a quantos beneficiam dos centros sociais paroquiais, aos jovens que buscam um sentido por entre o nevoeiro da opaca cultura atual e a quantos anseiam por alguém que os escute, aos que amam a beleza da arte e da música e aos que não desconhecem o que é a dedicação ao outro no ensino e na abertura de perspetivas de vida, aos que experimentam a fragilidade dos laços familiares e a muitos dos fraturados e vítimas da cultura libertária. Quanto se pergunta onde tem estado a Igreja, se quiserem ser sinceros, todos estes responderão: “Tem estado connosco. E porque a Igreja tem estado connosco, também sentimos que Deus nunca nos abandonou”.
Amigos, a Igreja alimenta o mundo de duas maneiras: de pão nas mesas e daquela Palavra que se torna esperança. Ora, todos nós somos Igreja. Então, ninguém esqueça: que, por nosso intermédio, o pão do corpo nunca falte em nenhuma mesa e a Palavra da Fé e da Esperança chegue, com igual urgência, aos acabrunhados e sem horizontes.
+ Manuel Linda
Manuel Linda, Bispo do Porto 11 de junho de 2020