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COMPREENDO E ACEITO

 

Ex.mas Senhoras, Ex.mos Senhores,

quem me conhece saberá que não gosto de demorar as homilias mais do que o indispensável. Hoje, porém, ouso pedir mais uns minutos da vossa paciência.

O Papa Francisco dedicou este ano a S. José. O objetivo é repensar esta figura absolutamente extraordinária, um homem do seu tempo e que muito tem a dizer àquele em que nos é dado viver. Esta celebração insere-se neste âmbito.

Trata-se de um momento não tanto simbólico, quanto verdadeiramente histórico: juntar o patronato e o sindicalismo, bem como representantes das mais credíveis instituições do Estado e da sociedade civil, não é de todos os dias. Mas juntá-los para rezar e refletir, talvez ainda seja mais raro. Será um milagre de S. José? A minha alegria, pois, por este acontecimento marcante e que eu desejava fosse apenas o primeiro de uma série, a cumprir todos os anos. Para oração, mas não menos para conhecimento mútuo, reflexão e convívio. Vamos a isso? Esta «cidade do trabalho» é também a cidade da paz e do coração. Não só o de D. Pedro, mas também o dos seus habitantes que se distinguiram e distinguem por um relacionamento comprometido na liberdade e na solidariedade. O gesto nobre de dar a melhor carne dos animais aos navegadores e ficar apenas com as tripas exprime isso mesmo.

Neste Dia do Trabalhador, evidentemente, gostava de apresentar algumas ideias sobre o trabalho e sua dignidade, à base da doutrina social da Igreja.

No desígnio do Criador, as realidades criadas, boas em si mesmas, existem em função da pessoa. De todas as pessoas. A atividade humana de transformação e melhoria do universo faz ressaltar a perfeição nele escondida, antevisão da beleza absoluta. Além disso, o trabalho representa uma dimensão fundamental da vida: é requisito para a existência da abundância de bens e serviços que, ao serem distribuídos por todos, asseguram o bem comum e as condições de realização pessoal e familiar.

O trabalho é, pois, não uma pena ou um suplício imposta à nossa condição, mas ensejo de contemplação da beleza intrínseca do universo, requisito indispensável do bem comum, fator de realização pessoal e, para quem crê, fonte de espiritualidade e verdadeira oração, já que se oferece a Deus o que Ele primeiramente nos deu e colaboramos no aperfeiçoamento da obra por Ele começada.

Sendo algo de antropologicamente tão estruturante no cumprimento da pessoa e da sociedade e até do sentido da história, compreende-se que tenha sido à volta do trabalho e da sua dignificação que se deram as grandes mudanças, conflitos e revoluções. Sempre se intentou o melhor. Mas nem sempre se conseguiu. Particularmente a Modernidade, talvez por efeito de alguma intervenção insensata por parte da política, introduziu fissuras profundas em várias áreas relacionadas com esta atividade. A maior, ainda não suficientemente sanada, foi entre o capital e o trabalho.

Não é aqui o lugar para me pronunciar longamente sobre um tema deveras complicado. Apenas faria as seguintes afirmações, na perspetiva da Igreja Católica, que lhe tem dedicado alguma da sua melhor reflexão:

- o trabalho não é uma simples mercadoria que se compra e se vende livremente ou um elemento impessoal da organização produtiva;

- o trabalho, pelo seu caráter subjetivo ou pessoal, é superior a qualquer outro fator de produção. Como tal, embora ressaltando a complementaridade entre trabalho e capital, há que afirmar sempre a superioridade daquele em relação a este;

- daqui o relevo a conceder ao “capital humano” ou recursos humanos, na certeza de que o desenvolvimento integral do trabalhador e a sua justa promoção e retribuição salarial favorecem uma maior produtividade e eficácia das empresas;

- há que estar de sobreaviso para os novos conflitos entre o capital e o trabalho. No passado, esse choque era motivado pelas baixas condições que muitos empregadores ofereciam aos seus assalariados, na ânsia de um maior lucro. Hoje, sem negar esta problemática, ela apresenta aspetos novos e preocupantes, já que a globalização, a glorificação do mercado e os progressos científicos e tecnológicos expõem os trabalhadores ao risco de serem explorados por uma engrenagem que nem se sabe bem quem a comanda. Em princípio, há vida comunitária na empresa, há laços de alguma familiaridade quando o trabalhador conhece a cara do dono ou do seu delegado para a administração. Mas é muito diferente a situação da multinacional, quase sempre criada com capital bolsista que apenas visa a valorização das ações. Neste caso, a empresa é gerida por um administrador temporário ou itinerante que está lá para afinar a máquina da rentabilidade, sem qualquer preocupação com as pessoas, transformadas em peças descartáveis e substituíveis desse engenho de lucro.

Amigas e amigos, muito mais haveria que dizer sobre o trabalho, dignidade salarial, relação entre trabalho e propriedade privada, o princípio da co-gestão, o justo repouso, o direito ao trabalho e o desemprego, o papel do Estado e da sociedade civil na promoção do trabalho, a questão da mulher e das crianças, a emigração, a ética do direito à greve, sindicatos e conciliação, o caso específico do trabalho agrícola, etc.

Resta-me formular votos e pedir a Deus os atenda por intercessão de S. José. O primeiro é que a humanidade saiba dialogar e fazer a paz num âmbito tão estruturante como o do trabalho e o do indispensável capital para constituir a empresa. Depois, que a liberalização do mercado não redunde numa competição que esmague os frágeis. Que o trabalho se humanize cada vez mais e que os cientistas e pessoas de cultura se dediquem a esta temática e ofereçam o seu contributo específico para se encontrarem soluções justas. Enfim, que a atividade intelectual e transformadora, enquanto dá cumprimento ao preceito divino do cultivar e aperfeiçoar a terra, favoreça o desenvolvimento integral do trabalhador, da sua família e do bem-comum mundial.

S. José leve estes meus votos a até junto de Deus, ele que certamente foi patrão da sua pequena empresa e, ao mesmo tempo, trabalhador no meio dos trabalhadores.

 

 

Manuel Linda, Bispo do Porto 01 de maio de 2021