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COMPREENDO E ACEITO

 

“Somos aquilo que comemos”

Homilia do Corpo de Deus de 2022

 

“Somos aquilo que comemos” - ouvimos dizer frequentemente e a ciência parece confirmá-lo. De facto, sabemos bem quanto a saúde ou a doença têm a ver com uma alimentação equilibrada e como a diabetes, o colesterol, o ácido úrico, a hipertensão, etc. dependem, em grande parte, do que que ingerimos. Daqui a responsabilidade moral de uma alimentação cuidada.

Na vida espiritual passa-se a mesma coisa. Se nos alimentamos do Corpo e Sangue de Jesus Cristo, a vida do Senhor passa a nós e a sua escala de valores, o timbre da sua existência torna-se o fundamento dos nossos comportamentos e atitudes, da perspetiva pela qual olhamos a vida e dos objetivos que nos norteiam. Se não comungamos o seu Corpo, se o seu Sangue não circular em nossas veias, temo que a nossa existência se feche no materialismo e naquilo que o identifica: o corte com Deus, a fuga do irmão, a falta de solidariedade, a insatisfação existencial e mesmo a agressividade latente. É que só podemos aderir a um dos dois mistérios possíveis: o de bênção ou de maldição.

No Evangelho, diz-se que o Mestre tomou os cinco pães e dois peixes, os abençoou e os distribuiu pelos cinco mil homens, saciando a todos. A segunda leitura refere a instituição da Eucaristia: o pão e o vinho consagrados são fruto da bênção pronunciada e o seu efeito é o anúncio da morte do Senhor, até que Ele venha, isto é, a nova cultura da dádiva total aos irmãos. E nos primórdios, mesmo sem o saber, já Melquisedec o preanunciava ao trazer pão e vinho para oferecer ao Deus Altíssimo e abençoar Abraão, confirmando, assim, que o povo a que este daria origem se afirmaria pela diferença na relação com o semelhante e na abertura ao mistério divino. Em todas estas leituras, a bênção faz toda a diferença: abre para possibilidades inauditas e inaugura uma qualidade de vida impossível fora dela.

Nestas mesmas leituras, há um verbo que se relaciona diretamente com a bênção: «dar». Na primeira, a seguir à bênção, Abraão deu a Melquisedec o dízimo dos seus bens; na segunda, refere-se que foi o Senhor quem deu o pão e o vinho consagrados aos Apóstolos e os mandou fazer isso em sua memória, isto é, mandou que também eles dessem o que receberam; e no Evangelho é Cristo quem dá a ordem expressa: “Dai-lhes vós de comer”. Repare-se que o Senhor nem faz contas ao alimento que existia e ao que, previsivelmente, seria necessário, nem realiza uma qualquer prévia multiplicação de pães para, depois de ter muito, o mandar distribuir. Não. O pouco que existe é para todos. E do pouco se faz muito, visível no numero dos comensais e nos doze cestos dos pedaços sobrantes.

Na compreensão de tudo isto, tradicionalmente, a fé católica e a piedade assentavam neste mistério eucarístico. Pensemos nos tronos para a adoração do Santíssimo, nas igrejas barrocas, algo de exclusivamente português. E no relevo concedido à procissão do Corpo de Deus, promovida pelas autoridades civis, corporações e associações. O mesmo se poderia dizer das ornamentações artísticas das procissões do “Senhor fora” ou “Senhor aos Entrevados”.

Curiosamente, à medida que afrouxaram estas celebrações, também se nota uma substituição da bênção pela maldição. Refiro-me ao sentido etimológico das palavras e seu âmbito social. Na origem da palavra «bênção» estão duas outras que significam «bem» e «dizer»; em «maldição», entram as palavras «mal» e «dizer». E o que vemos hoje em certos mass-media, redes sociais, escritos panfletários, textos vazios com pretensão de literatura, não são mesmo fazer da maldição uma atividade habitual, desafogar o ódio e a raiva na contínua maledicência? E essas pessoas serão exemplo de dedicação aos outros, de dádiva fraterna? Infelizmente, não. Pensemos no nosso meio. Entre nós, há fome! E quem está na linha da frente para a minorar? As Paróquias e uma grande quantidade de católicos que levam refeições aos sem-abrigo ou recolhem as sobras generosamente fornecidas pelos restaurantes e, quase às escondidas, as distribuem por muitas famílias.

Somos aquilo que comemos. A Eucaristia assenta nas grandes coordenadas humanas: na natureza e na cultura. Tomamos o pão e o vinho que são “frutos da terra e do trabalho do homem” e, uma vez abençoados e transformados no Corpo e Sangue do Senhor, tornam-se “Pão da vida e cálice da salvação”. E daí se originam novas e elevadas atitudes de dádiva, generosidade, acolhimento, misericórdia. Daí nasce e se desenvolve uma nova cultura de fraternidade e de partilha que substitui o dito «bom senso» materialista da troca comercial, do aumento do lucro, do volume dos negócios, pelo amor que consegue fazer milagres de grandeza a partir das coisas pequeninas acalentadas no coração. É que o verbo principal dos cristãos é «dar» e não «ter». Até porque sabemos que, quando não se dá, tira-se. E sob esta perspetiva, muito teríamos a dizer da sociedade contemporânea.

Seja a Eucaristia, Corpo e Sangue do Senhor celebrado todos os Domingos, penhor de bênção, de fraternidade e de partilha. Como tal, o identificativo da condição cristã. A identidade de todos e cada um de nós, os crentes.

 

 

 

 

 

Manuel Linda, Bispo do Porto 17 de junho de 2022