Rei, reino ou realeza são as palavras mais escutadas na liturgia deste último domingo do ano litúrgico. Importa aclarar-lhe o significado e retirar daí as devidas conclusões para a economia da salvação.
A primeira leitura deixa subentender a razão pela qual David, antepassado de Jesus de Nazaré, adquire o título de rei: porque, efetivamente, unificou as tribos de Israel. Esta noção passa para Cristo, Aquele que, pelo seu sangue derramado na cruz, unifica os homens desagregados e divididos, a ponto de fazer “de judeus e gregos um só povo” (Ef 2, 14). É isto que professamos no Credo, ainda que usando uma palavra diferente, quando afirmamos: “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo”. Este senhorio, porque é total e definitivo, exclui quaisquer outras dependências.
Por seu lado, a liturgia desta Solenidade, no prefácio, encarrega-se de nos revelar o mistério deste reino. E coloca como sua primeira característica a verdade: “reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz”. Curiosamente, a verdade e a realeza constituíram o objeto material do julgamento do «réu» Jesus pelo juiz Pilatos: “Logo, tu és rei? […] É como dizes: eu sou rei. Para isso nasci, e para isso vim ao mundo: dar testemunho da verdade. […] Disse-lhe Pilatos: Que é a verdade?” (Jo 18, 37-38).
Que é a verdade? Boa pergunta que tem acompanhado a humanidade ao longo da sua história. Foi sempre considerada a descoberta da realidade que se nos impõe pelo facto de ser assim e não de outra forma. Por exemplo, o facto de ser pessoa: sou homem, logo sou superior ao mundo e inferior a Deus. Ou então: se quero que nesta catedral entre a luz e não o frio, devo fazer com que determinados espaços sejam de vido e não de pedra. E chamo-lhe janela. Nesta perspetiva da verdade, a dificuldade não está na sua aceitação, mas sim na descoberta. Por isso, a cultura, a ciência, as artes e os outros âmbitos do humano, cada um à sua maneira, intentavam esta busca afincada da verdade da vida e das coisas.
Hoje, porém, parece que nos cansamos na busca da verdade. As ciências passaram a trabalhar com hipóteses e os critérios pragmáticos a sobreporem-se a todos os outros: “Vou investir em armas sofisticadas, que matem ainda mais, porque, daí, tiro benefícios económicos assombrosos”. Entramos, assim, no reino do subjetivo e na exclusão da força vinculante da realidade. Consequentemente, na renúncia e na negação de uma verdade universal.
Neste reino, tudo são posições efémeras: cada um constrói a «sua» verdade. O que, objetivamente, é uma mentira. Não depende da «minha» verdade dizer, por exemplo, que esta toalha de altar é preta. Isso tem um nome: mentira. Ou idiotice. Como consequência desse construtivismo omnipresente, desaparece a verdadeira assunção de responsabilidades, pois esta só existe num horizonte global de sentido ou na tal força vinculante da realidade.
Neste clima cultural, que a política está a assumir como seu, a verdade das coisas desfaz-se em ridicularias: a natureza anatómica e biológica da sexualidade não conta nada para as opções legislativas; o legislador vive a obsessão de inverter tudo o que era a perceção cultural da humanidade sobre o género masculino e feminino; reclama-se o aborto como direito absoluto, não obstante todos saberem que é a «pena de morte» aplicada a um ser humano indefeso; à revelia de todas as normas internacionais, mormente da ONU, as «barrigas de aluguer» são tidas como máxima modernidade, quando, na prática, a história sempre reconheceu a gestação em alguém a quem não se estava vinculado como «infidelidade matrimonial» chocante ou até «incesto» nojento e deprimente; a eutanásia torna-se opção existencial de uma sociedade que, na prática, dá cobertura à opção pelo cão, em detrimento do cuidado do pai e da mãe. Ou dos filhos!
Este camuflar da realidade não é novo. Sem qualquer exceção, as terríveis ditaduras do século XX, confiavam a específicos «ministérios da propaganda» a insistência nos temas que conduziram ao desastre. Curiosamente, sempre a partir de partículas de verdade que elevaram à categoria de verdade total.
É aqui que nos separamos da mentalidade do mundo que temos de fermentar com a verdade e o humanismo do Evangelho. Aquela, ao assentar no patamar de que não há verdade universal e, consequentemente, de que cada um faz a «sua» verdade, adota a epistemologia da fracturação e pulverização da realidade. Atitudes que, a curto prazo, se tornarão socialmente catastróficas. Ao contrário, David, em acenos, e Jesus Cristo, em plenitude, juntam, congregam, unem. Da absoluta divisão, constroem, livremente, uma sintonia de corações, geradora de uma fraternidade. E sabemos bem que só esta é a verdade da vida, criadora de sentido e de alegria.
Caros fieis em Cristo, em geral, mas especialmente vós os que ides ser instituídos em ministérios: a primeira missão «oficial» do ministro ordenado, em cuja direção vos colocais, é o serviço da verdade. Por isso, começais por ser Leitores para proclamar a palavra desse Deus que Se revela em Jesus Cristo, o qual, a Si mesmo, se definiu como “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6). E só depois é que surge o Acólito, como ajuda à celebração do Verbo eterno e verdadeiro na liturgia oficial. A palavra de Deus é, pois, para nós, força libertadora, instrumento de racionalidade, horizonte da verdade total. Não omitais nem troqueis a palavra de Deus por qualquer ideologia que, como todas as outras, acabará por se revelar opressora. E bem opressora! E lembrai sempre, a vós mesmos e a todos, o que garante o único Senhor: “A verdade vos libertará” (Jo 8, 31).
Manuel Linda, Bispo do Porto 24 de Novembro de 2019