a homilia desta celebração poderia, muito bem, reduzir-se à interpelação vigorosa que S. Paulo faz a um cristão, por sinal, também bispo, o seu discípulo Timóteo, tal como aparece na segunda leitura: “Tu, homem de Deus, pratica a justiça e a piedade. […] Guarda o mandamento do Senhor”. Mandamento, para Paulo é o conjunto das obrigações que provêm da fé. Fundamentalmente, duas: a glória divina, ou piedade, e o cumprimento do projeto de Deus para o mundo, ou justiça. Reflitamos, então, um pouco nelas.
A conhecida parábola do Evangelho do rico hedonista e do pobre Lázaro é tão rica de significados que permitiria muitos âmbitos de exploração: a prática da caridade como chave da vida eterna; a concretização das bem-aventuranças na figura do pobre e do escorraçado; o sentido do sofrimento, pois as injustiças serão ultrapassadas e compensadas no amor de Deus; a noção de que este mundo prepara o outro; a sempre necessária conversão; a denúncia das falsas seguranças; etc.
Porém, chama-me a atenção uma linha mais unificadora, que exprime bem o específico cristão: a inserção em Cristo, origem daquela conaturalidade que leva a pensar o que Ele pensa, sentir o que Ele sente, fazer o que Ele faz. É a partir de Cristo que podemos ajuizar a atitude do rico que, perante a lei civil, não faz nada de mal. Mas, no seu individualismo hedonista, também não faz nada de bem pelos outros. Mesmo o mínimo, que seria conceder as migalhas ao esfomeado. E é também em Cristo que nos abrimos ao mistério pascal, expressão suprema da espiritualidade, porque contraposta ao materialismo, e porta de entrada na vida em plenitude, aqui definida, à maneira judaica, como “seio de Abraão”.
Este é, de facto, o alicerce da nossa fé: pelo batismo, somos inseridos em Cristo “como o ramo na videira” e, alimentados pela mesma seiva do Espírito, participamos do dom do Pai que gera em nós frutos saborosos de boas obras para este mundo e para a eternidade. A vocação cristã passa, assim, de forma natural e sem dualismos, pela aceitação da existência biológica como o tempo histórico para, na união e sob o exemplo de Cristo, ajudar a retirar a dor, o sofrimento e as negatividades deste mundo e nele implantar a semente do reino de Deus, os seus critérios e valores, antecipação da grandeza da bem-aventurança no seio do nosso Deus, origem e meta de todos nós. Timbre de humanismo nesta vida, ou justiça, e mundo que há de vir, ou espiritualidade, eis o binómio-síntese do dado cristão.
Sim, o cristão está no mundo para o ajudar a não caminhar sempre curvado para a terra, com os olhos colados ao chão, mas a erguer as mãos e a mente para o Alto, gesto sumamente libertador em relação à mesquinhez da opressão das coisas pequenas. O cristão humaniza o mundo quando canta a glória e os louvores divinos, pois descobre o significado da vida no que está acima de nós e não no que pisamos com os pés. O cristão anuncia uma grande boa nova quando proclama que, como garantia São Paulo na segunda leitura, só o Senhor Jesus é “o venturoso e único soberano, Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que possui a imortalidade”. Para nós, de facto, a essência da liberdade está em submetermo-nos a esse único Senhor, como o fizeram D. António Barroso, D. António Ferreira Gomes, D. António Francisco e todos os demais bispos que nos antecederam nesta Sé do Porto.
Mas esta linha de espiritualidade libertadora interliga-se e supõe a justiça ou abertura ao próximo, a exemplo do Senhor Jesus que “passou fazendo o bem”. Por vezes, é mesmo preciso levantar a voz, como o profeta. É preciso, por exemplo, denunciar o mau uso da riqueza, não por ser riqueza, mas por ser colocada ao serviço exclusivo ou individualístico de quem a gasta em luxo e extravagâncias, na maior insensibilidade às desventuras e à fome dos outros, como fazia o rico da parábola. Insensibilidade das pessoas, mas não menos de inteiras nações e povos que consideram inegociável o seu nível e estilo de vida e desperdiçam imensos recursos naturais, muitas vezes fruto da rapina e exploração dos pobres. E quando estes se aproximam das migalhas, aqueles cercam-se de muros. Muros piores do que o do rico avarento: na casa deste, pelos vistos, ainda havia um portão por onde, ao menos, os cães entravam e saiam para lamber as chagas de Lázaro. Nos muros dos atuais ricos não há qualquer abertura nem qualquer intercâmbio.
Nós, cristãos, não estamos contra o mundo. Pelo contrário: porque o apreciamos é que o queremos melhor. Por isso, garantimos que o hedonismo distrai a atenção do essencial. Prevenimos, também, que o individualismo nos leva a fechar os olhos e impede de ver a miséria alheia: porque endurece o coração, torna-nos insensíveis aos frágeis, pois estes causam sempre indisposição aos do bem-estar. E alertamos que o materialismo das pessoas facilmente se transfere para as mentalidades dos povos e gera as piores injustiças: a insensibilidade social, as desigualdades gritantes, as acusações fáceis, o neocolonialismo, a exploração desenfreada dos recursos naturais e mesmo das nações mais pobres.
Não existe ídolo mais sanguinário que o bezerro de ouro: impede o acesso a Deus e aos irmãos e tende a alimentar-se do sangue destes. Como pode um discípulo de Cristo adorá-lo? Quem sacrifica a esse vitelo entra em ruína porque não se cumpre na sua vocação histórica e eterna, tal como avisa a parábola.
Como guia da Igreja, tu, “homem de Deus”, caro D. Vitorino, prega sempre a liberdade que nos vem da espiritualidade. Mas também nunca te esqueças da justiça: só o anúncio da verdade do outro nos faz crescer como pessoas. Ou como nos dizia o Papa Francisco, na última visita ad limina, “uma formação autenticamente cristã da consciência é de extrema e indispensável ajuda para o amadurecimento social e para o verdadeiro bem-estar de Portugal”.
Para isso, sintonizemos na unidade. Sintonizemos com o nosso clero e diáconos, quase sempre excelentes na dádiva de si e no zelo apostólico. E sintonizemos com o laicado que também me impressiona pela dedicação, competência, fervor e dinamismo. Falemos a uma só voz: a voz da Diocese do Porto.
Intercedam por ti, e por todos nós, São Miguel Arcanjo, cuja festa litúrgica hoje celebramos, e a nossa Padroeira, venerada como Senhora da Vandoma, aqui no Porto, e Senhora da Assunção em toda a nossa Diocese.
Manuel Linda, Bispo do Porto 29 de setembro de 2019