O Espírito renovador
S. Lucas, nos Atos, diz-nos que os Apóstolos, no dia de Pentecostes “estavam todos reunidos no mesmo lugar”. E S. João, no Evangelho, especifica que estavam “fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam”. Usando a linguagem a que as circunstâncias recentes nos habituaram, quer isto dizer que também eles estavam “confinados” e também eles viveram numa espécie de primeira e exemplar “Igreja doméstica”, “com Maria, a Mãe de Jesus”. O motivo também era o medo: não de um vírus, mas dos que não aceitavam a verdade que os Apóstolos iriam testemunhar até ao martírio. A saber: que Deus constituiu Jesus de Nazaré “Juiz dos vivos e dos mortos” (At 10, 42) e Salvador, pois “não há salvação em nenhum outro nem há nenhum outro Nome dado aos seres humanos pelo qual possamos ser salvos” (At 4, 12).
Com a efusão do Espírito, permaneceu a Igreja, mas terminou o confinamento. Os Apóstolos partiram em missão, só nessa altura dando cumprimentos à ordem recebida na Ascensão de irem por todo o mundo. E, por eles, a Igreja entrou, alegre e entusiasticamente, em muitas casas de famílias que nem suspeitavam que tal pudesse acontecer: o desconfinamento multiplicou a Igreja, esta começou a separar-se da sinagoga e a viver exemplarmente a tríplice dimensão que a caracteriza, como comunidade evangelizadora, de oração e de caridade. Fruto do “Espírito de fortaleza”, começou, portanto, um dinamismo que só terminará quando terminar a história. Essa vitalidade, de algum modo, está já espelhada na cena da pregação de Pedro, tal como no-lo conta a primeira leitura: começa a vislumbrar-se um mundo novo, mais unido, que se entende, domina a mesma linguagem e pede o mesmo batismo. Sabemos onde isso levou: a uma verdadeira família humana, estreitada nos laços da alegria e da paz, tão solícita e solidária que chegou ao extremo de vender o que possuía para repartir por todos, para que entre eles não houvesse necessitados.
O mundo não nasceu nesse dia. Mas a Igreja sim. E esta nasceu para renovar aquele. É esta a certeza implícita no salmo responsorial: “Mandai, Senhor, o vosso Espírito e renovai a terra”. Renovação passou a ser como que a síntese do mistério da Igreja no mundo: uma Igreja chamada a renovar o que se vai tornando caduco, o que decai no abismo da pura materialidade, porque pouco humano, sem asas nem elevação. Uma Igreja restauradora da unidade entre os homens, sempre ameaçados pela divisão, como aquando da tentativa da construção da torre de Babel: se, então, a unidade entre eles era ensaiada em oposição a Deus e conduziu à dispersão e à confusão das línguas, no Pentecostes, o Espírito, manifestado também em línguas -mas de fogo-, torna possível a comunhão entre os diversos povos e compreensíveis as distintas linguagens. Eis a Igreja como “alma do mundo” ou sua perene juventude.
Mas a Igreja renovadora também vive no mundo. Isto é, também ela corre o risco de ceder à lei da «queda dos graves”, de se amesquinhar, de adormecer e perder as enzimas fermentadoras. Necessita, por isso, de estar continuamente de sobreaviso. Necessita de receber e ser dócil ao Espírito. É que só Este é o vento que move as suas velas e o fogo que a acalenta. Só Ele a torna viva e dinâmica, vínculo de unidade e, ao mesmo tempo, aglutinadora da variedade dos dons e carismas que repousam nos seus fiéis. Só o Espírito Santo a capacita para o cumprimento da dupla tarefa que o Concílio magistralmente sintetizou na conhecida frase: ser “como que um sacramento, ou seja, sinal e instrumento da união íntima com Deus e da unidade de todo o género humano” (LG 1). Fazer a união com Deus e a união entre nós, humanos – eis a única coisa que se espera da Igreja. É esta a sua forma de operar a tal renovação. E de servir o mundo.
Caros fiéis, o confinamente fez-nos voltar a casa, metáfora da realidade familiar vivida com alegria e entusiasmo. Agora, não se regrida à nostalgia das cebolas podres do Egipto, tal como o povo judeu. Daqui para a frente, todos nós e a Igreja não poderíamos ser mais «caseiros», no sentido de família de famílias mais unidas? Família que tudo faz para se alimentar ao mesmo tempo e à mesma mesa; que se sustenta a partir do contributo de todos os seus membros, seja para a carteira comum, seja pelo exercício das tarefas que cada um pode realizar; que se solidifica divertindo-se em conjunto e participando nas mesmas brincadeiras, ainda que, para isso, seja necessário que todos reduzam o tempo de utilização do «seu» ecrã; que ousa pronunciar o nome de Jesus e encontra tempo para, em conjunto, levantar as mãos para Deus; que faz suas as preocupações das outras famílias, seja o sofrimento da doença, da pobreza, da violência doméstica, da desunião e da falta de esperança; que sabe que o Domingo se relaciona mais com o templo, a casa de Deus, do que com o centro comercial, estrutura impingidora de sonhos de uma felicidade obtida a partir do que está fora de nós, quando, na verdade, a felicidade só se constrói a partir da abertura do núcleo mais íntimo de cada um ao ser do outro. Sim, a felicidade é um segredo e a Igreja é chamada a desfazê-lo. Sob pretexto de essa felicidade passar ao lado de tantos…
O dia de hoje, encerramento do “Mês de Maria”, marca o regresso a uma certa normalidade, a um certo refazer da vida. A Mãe de Jesus estava presente no Cenáculo aquando da descida dos Espírito Santo e consequente início da nova existência. Seja, também, efetivamente novo o tempo que agora se inicia. E sê-lo-á se for um tempo de espiritualidade, de unidade, de renovação. Numa palavra: um tempo do Espírito Santo. Até porque, garante-nos Karl Rahner, “se buscamos aquela liberdade interior na qual o homem permanece fiel a si mesmo; se queremos libertar-nos da prisão do egoísmo; se procuramos a alegria que não tem limites; se anelamos por um Mistério que, na fé, captamos como unidade, sentido e amor, então, é o Espírito Santo que nos move”.
Vinde, Espírito Santo, movei o coração dos vossos fiéis e renovai a face da terra.
Manuel Linda, Bispo do Porto 31 de maio de 2020