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COMPREENDO E ACEITO

O Sangue que nos une em amizade

 

Nas leituras da liturgia deste dia solene do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, a palavra que mais se repete é “sangue”: na primeira, descrevia-se o gesto de Moisés aspergir o povo com ele, por alturas de uma aliança ou compromisso que este assume de cumprir a lei divina; na segunda, contrapõe-se o sangue inoperante dos cabritos e novilhos ao Sangue efetivamente redentor de Jesus Cristo; no Evangelho, é o próprio Salvador quem garante que o seu é o “Sangue da nova e eterna aliança derramado por todos para remissão dos pecados”. Isto é, para libertar o mundo do reino do mal e, consequentemente, fazer com que o Sumo Bem, Deus, nele tenha lugar.

Tudo isto nos remete para a ideia de sacrifício, tão típica das religiões antigas. De facto, entendia-se que renunciar a um bem precioso para o oferecer à divindade era não só prova de submissão, mas também forma de amizade, convivência e comunhão com a entidade a quem se doava. E se doar qualquer coisa –pão, farinha, vinho, perfumes, etc.- por si, já representava muito, oferecer o sangue da vítima era o máximo, pois era tido como núcleo e expressão da própria vida, centro dos centros não contaminado pelas más ações visíveis e exteriores. A fé do povo bíblico acrescentava a isto a convicção de que o sangue humano era a “alma da vida”, pertença sagrada e exclusiva de Deus Criador. Por isso, derramava-se ritualmente o sangue animal, mas não o humano, objeto de um mandamento formulado nos termos mais absolutos: “Não matarás”.

É de toda esta perceção que arranca o gesto de Jesus, acontecido em Quinta-feira Santa, antecipação do Calvário. Como verdadeiro Homem, o Senhor vinca que é típico da humanidade entrar em proximidade afetiva e comunhão com o seu Criador. Toda a humanidade, como tão bem ressalta o inciso: “que vai ser derramado por vós e por todos”. Por isso, qual novo Moisés, não asperge o povo, mas, com mais intimidade –a aspersão é exterior e a bebida é interior-, dá o seu próprio sangue a beber à multidão, a “todos”: “Tomais todos e bebei”. E acrescenta novos dados: agora, a aliança é nova e definitiva; é de reconciliação, pois opera a “remissão dos pecados”; tem validade “eterna”, a ponto de não ser preciso mais sangue biológico, mas apenas fazer isso em sua “memória”; é ritualizado numa solene celebração na qual a palavra bíblica, recitada e cantada, se junta ao gesto; faz-se por amor e no amor, tão expresso no lava-pés; enfim, passa a identificar o verdadeiro amigo do Noivo divino, pois, como Ele mesmo havia dito, quem está com Ele “não pode jejuar” (Mc 2, 20).

Expressão de amizade a Deus, culto devido ao Pai, sacrifício de reconciliação, antídoto dos pecados do mundo, fundamento de uma humanidade restaurada e unida, ponto final da lógica da violência que só gera vítimas, testemunho do perdão, laço de família entre Deus e a humanidade, cumprimento da vontade de Jesus de repetirmos este memorial que restabelece a mútua união – eis quanto realizamos neste gesto maior de entre todos quantos podiam acontecer no mundo e que foi santamente confiado à Igreja. Por isso, celebramos e veneramos a Santa Ceia ou Eucaristia como dom mais sublime, a ponto de o titular de “Santíssimo Sacramento” ou “Corpo de Deus”. Santíssimo! Isto é, o mais divino, a plenitude da graça, a maior bondade e beleza de entre as todas as ações humano-divinas possíveis.

A Igreja considera a Eucaristia como “centro e cume de toda a vida cristã” (LG 11), a ponto de, na prática, a identificar com a própria condição cristã: ser crente é ir à Missa; não a frequentar é não ter fé ou tê-la de forma ténue e adormecida. Por isso, a Missa é objeto de terminação do primeiro dos cinco “Mandamentos da Igreja”: “Participar na Missa aos domingos e festas de guarda e abster-se de trabalho servil”.

Repare-se: como cristãos, somos chamados à receção de diversos sacramentos, a alimentarmo-nos com a palavra de Deus, ao fortalecimento contínuo da fé, ao exercício da caridade, ao perdão dos inimigos, à missão e à evangelização, a um comportamento reto e bondoso, hipoteticamente, podemos mesmo ser convocados ao martírio, etc. Mas, a respeito de tudo isto, não se estabeleceram “mandamentos” da Igreja. E a respeito da Missa, sim. Porquê? Porque a Eucaristia como que sintetiza todos estes âmbitos e os supõe.

É, pois, com profunda angústia que se assiste à forte desvalorização do apreço pela Missa do Domingo. Já antes da pandemia. Porque ao deixar-se a Missa, deixam-se as outras dimensões religiosas católicas: a fé, o estilo de vida crente e a pertença à comunidade ou Igreja. Fica, na melhor das hipóteses, uma certa ritualização da vida, fruto de hábitos sociológicos adquiridos, e que se exprimem somente nos momentos mais solenes do batismo e funeral, da Comunhão e do Crisma.

Se este estado de coisas já era preocupante antes do confinamento, agora não sabemos como vão reagir muitos dos praticantes. Temos de os ajudar a regressar. Claro que ninguém regressa à frequência habitual da Missa só para fazer a vontade a um amigo. Mas regressará ou até começará a vir à Eucaristia quem não tinha esse hábito, aquele que compreender a excelência do que se celebra.

Evangelizemos, portanto. Falemos, exponhamos, argumentemos, mostremos, expliquemos. E nós, os celebrantes, jamais desdigamos com a banalização a sublimidade deste Mistério dos mistérios ou “Mistério da fé”. A Eucaristia é a sala do banquete, o lugar e o modo do alegre convívio entre Deus e a humanidade. Entremos na festa.

 

 

Manuel Linda, Bispo do Porto 03 de junho de 2021