A Mãe do amor formoso
Na Solenidade de Nossa Senhora da Vandoma – 2021
A nossa existência não se reduz à história. E os cristãos não passam a vida a olhar para trás. Não obstante, a história indica-nos as raízes que caraterizam o nosso ADN e a consequente direção que nos incute.
Ora, não compreenderemos a história da cidade do Porto e aquilo que somos hoje se não recuarmos aos finais do primeiro milénio. Em números redondos, vão lá cerca de 1050 anos. Numa das suas muitas razias de absoluta e bárbara crueldade, o terrível e sanguinário general mouro Almançor terá destruído por completo a cidade do Porto, aí por volta do ano 982. Alguns historiadores, porventura por causa da ressonância bíblica, dizem mesmo que ele não deixou aqui pedra sobre pedra. Na batalha pela sua defesa, morreu o governador de Entre-Douro-e-Minho, o Conde Gonçalo Moniz. Salvaram-se os dois filhos, Moninho e Sisnando Viegas, que terão ido pedir ajuda aos cristãos gascões ou vascões, pois começava a fermentar algo que mais tarde identificaríamos como espírito de Cruzada.
Refira-se que a localização da Gasconha não é consensual. Mas tudo indica que não andaria longe do atualmente designado País Vasco espanhol e francês. O que é certo é que, passados poucos anos, os dois irmãos conseguiram constituir uma fervorosa e razoável armada que chegou ao Porto por via marítima. Nela, vinha também o Bispo de Vandôme, Nonego ou Inigo de seu nome, o qual, tendo provavelmente nascido em território espanhol, exercia o episcopado do outro lado dos Pirenéus. E com todos, veio a imagem de Nossa Senhora de Vandôme, padroeira da principal Diocese dessa zona.
Esta armada cristã conseguiu expulsar os mouros, restaurou a cidade e fortificou-a. Como atribuíram estes feitos à poderosa intercessão da Virgem Maria, colocaram a imagem da Senhora da Vandoma sobre a porta principal das novas muralhas: precisamente a que se designava por “Porta do Aljube”, que conduzia diretamente à Sé pela Rua Chã.
Com o ânimo que lhes advinha do bom sucesso e da fé, os cristãos avançaram na conquista de terreno aos mouros e tornaram-se mesmo senhores das muito importantes terras da Feira que passaram a ser designadas por “Terra de Santa Maria” verdadeiro embrião da portugalidade. E, ao Porto, colaram a designação de “Civitas Virginis”, Cidade da Virgem, qualificativo que, não obstante os muitos solavancos da história, se manteve até hoje e continua a figurar na nossa heráldica.
Não possuímos muitos elementos sobre esse tempo histórico. Não obstante, estes já são suficientes para algumas tomadas de consciência. Assim: depois desta transição da Alta para a Baixa Idade Média, nunca mais a nossa urbe foi destruída; a liberdade que carateriza a cidade do Porto arranca de um gesto de fervor religioso –tal como se entendia, naquela altura- e de colaboração internacional; o gérmen da portugalidade é consequência de vontades de emancipação que se agregam à volta de Santa Maria, aqui venerada como Senhora de Vandoma, e que forneceu a primeira designação ao território livre; a Igreja foi parte determinante deste processo ao fomentar um espírito que poderia ser qualificado como o de uma Igreja livre num território livre; a Diocese tornou-se como que catalisador das diversas instituições.
Hoje, somos herdeiros felizes e depositários venturosos duma cidade que cresceu, se desenvolveu e deu nome a Portugal a partir da simbiose entre o seu povo e a fé, de algum modo concretizada n’Aquela que nos trouxe o Autor da Salvação: a Mãe de Jesus, que veneramos como Nossa Senhora de Vandoma. Agradecemos-lhe esta proteção dedicada à nossa cidade que a tem por Padroeira e, por isso, a conserva nos seus brasões, a representa na heráldica e faz gala de referir a todos que esta não é um núcleo populacional qualquer: é a “Cidade da Virgem”.
É e será sempre, pois, entende bem a referência à Mãe de Deus e dos homens e as promessas contidas no texto de Ben-Sirá com que se abria a Liturgia da Palavra desta Missa votiva: “Como a videira, lancei rebentos graciosos e as minhas flores deram frutos de glória e de riqueza. Eu sou a mãe do amor formoso, do temor, da ciência e da santa esperança. Em mim está toda a graça do caminho e da verdade, em mim está toda a esperança de vida e de virtude”.
Veneremo-l’A. Celebremo-l’A. Amemo-l’A. Invoquemo-l’A. Tragamo-l’A sempre na nossa mente e no nosso coração. E todos –crentes, instituições, organismos dos diversos âmbitos- recobremos essa diferença positiva de podermos dizer que, pela história e por opção, somos mesmo a “Cidade da Virgem”. Deste modo, daremos expressão concreta às palavras do já referido livro do Ben-Sirá: “A memória do meu nome durará por todos os séculos”. Porque Ela é formosa, santa e imaculada, como cantávamos no salmo responsorial. É Mãe!
Para a nossa cidade e Diocese que tanto a amam, invoco a sua proteção e carícia materna.
Manuel Linda, Bispo do Porto 11 de outubro de 2021