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COMPREENDO E ACEITO

 

Missa da Ceia do Senhor

Eucaristia e afetos

 

Deixa-se à segunda Leitura desta Missa, certamente o mais antigo relato histórico do que Jesus fez num dia semelhante ao de hoje, o registo que dá sentido litúrgico a esta celebração: a instituição da Sagrada Eucaristia e, consequentemente, a ordenação de quem a celebra, isto é, o sacerdócio da nova Aliança. Este augusto Sacramento coloca-se no seguimento do rito com que os judeus faziam memória da sua Páscoa: a libertação do Egito. Mas a nossa Eucaristia é de outra ordem, completamente distinta: celebramos ritualmente não um acontecimento, mas a Pessoa viva do Senhor Jesus Cristo. O Evangelho, por sua vez, coloca o assento no serviço humilde que deve ser inerente à vida cristã, aqui expresso no gesto chocante do lava-pés, tal como praticado pelo Salvador. Fixemo-nos neste dado.

Depois de ter lavado os pés aos discípulos, o Senhor interroga-os: “Compreendeis o que vos fiz?” (Jo 13, 12). Quer dizer que, ao contrário do que possa parecer, o gesto não é de fácil compreensão. De facto, não se trata do mero exercício de uma simpatia ou caridade momentânea. Exprime antes o próprio ser de Deus: Deus é um amor derramado nos nossos corações (cf Rom 5, 5). Como amor, não se limita a fazer gestos simpáticos, mas revela-Se como «um Deus do serviço». É um Deus voltado para o nosso bem na criação, na libertação, na redenção e na contínua providência em nosso favor.

Evidentemente, se este amor de Deus e a revelação do Seu Ser se derrama no nosso coração, aquele que vive n’Ele e por Ele não pode ter outras atitudes na vida que não sejam as do serviço caridoso e simpático. De resto, o Senhor Jesus assim o refere expressamente: “Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo 13, 15). É o tal «compreender» ou a revelação de um mistério. É um saber não de ordem intelectual, mas algo inerente à existência crente: é a sabedoria do amor atuado continuamente. Esse mistério de Deus é compreendido não pela especulação de uma qualquer ciência, mas o crente insere-se nele sempre que se faz o que o Senhor faz.

Ao longo da sua vida de ensino, o Mestre, revelador do Pai, já tinha chamado a atenção para isto. Os discípulos ouviram várias frases como esta que os começava a introduzir no tal conhecimento: “Sabeis que os chefes das nações têm poder sobre elas e os grandes as oprimem. Entre vós não deverá ser assim. Quem quiser tornar-se grande, torne-se servidor; quem quiser ser o primeiro, seja servo. Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate em favor da multidão” (Mt 20, 24-28). Não obstante, para que não transportassem para a cabeça uma atitude que deve ser fundamentalmente do coração, Jesus faz esse gesto do lava-pés, chocante para a mentalidade daquele tempo e não menos para o nosso.

Muitas vezes, associamos o serviço humilde e contínuo ao ministério dos padres. Até porque hoje é o dia do sacerdócio. De facto, ligado ao Sacramento da Ordem está esse gesto que impressiona do prostrar-se por terra enquanto se cantam as ladainhas e se invoca a intercessão dos santos. De resto, o padre é chamado a despojar-se de tudo: da sua autossuficiência, de mulher e de filhos, de grandezas e de especiais riquezas, enfim, até da sua determinação livre em nome da obediência jurada. Padre que não soubesse servir o povo de Deus e até os outros homens e mulheres não corresponderia a quanto revelado no gesto do lava-pés.

Não obstante, a obrigação do serviço não é só para ele, pois também não foi só nele que o amor de Deus se derramou no coração. Inerente à condição cristã encontra-se este fazer o que Deus faz para compreender o que Deus é. Cada fiel, pela enxertia em Cristo pelo batismo, “como os ramos na videira”, não penetra no mistério de Deus, não é seu discípulo se não se deixar moldar por este timbre de amor, se não fizer da sua vida uma doação aos irmãos. Porque isto nem sempre é fácil, alguns rejeitam-no. E ao recusarem isso, recusam a fé. Talvez seja esta a principal explicação para uma certa crise contemporânea: tantos que pensavam que a fé é um receber, quando, afinal, ela é uma dádiva, um serviço.

Mas, a exemplo do Senhor Jesus, não chega a mera prática do serviço: exige-se que seja feito na simpatia e na ternura. No lava-pés encontramos a exemplificação: lavar supõe delicadeza, um toque de sensibilidade, um afago e uma certa doçura de atitudes, pois não se lava da mesma forma que se amanha uma pedra ou se abre um túnel à base de dinamite. A prática do serviço, portanto, há de ser a marca dos cristãos. Mas sempre e só na nobreza dos melhores afetos. De tal forma que a nossa Igreja, nos seus ministros e em todos os seus fiéis, se torne, efetivamente, a pátria dos afetos. Quando assim acontece, tornamos a fé atraente e apetecível e resolvemos mesmo a problemática vocacional: a falta de padres também terá a ver com a dificuldade de serem apenas alguns a servir quando a grande maioria não serve, mas apenas se serve.

Caros cristãos, dizemos –e bem!- que a Eucaristia é memória (“Fazei isto em memória de mim”- Lc 22, 19) e anúncio (“Anunciamos a morte do Senhor até que Ele venha”- 1 Cor 11, 26). Ao cumprir a ordem que o Senhor nos deu de tornar viva a sua memória, façamo-lo com a mesma nobreza de sentimentos: o anúncio de que pertence a Deus e ao seu Reino aquele que, envolvido no seu amor, sabe servir os outros e o mundo a partir de atos concretos modelados pela ternura e pela amabilidade.

Que o Espírito Santo derrame o seu amor no nosso coração.

 

 

Manuel Linda, Bispo do Porto 14 de abril de 2022