Só o “Bom” Jesus, é referencial de valores
Desde há centenas de anos, a imagem do Bom Jesus, objeto de culto nesta bela Igreja de Matosinhos, atrai continuamente milhares de fiéis, de maneira particular, por alturas desta sua festa anual. Veem para celebrar a vida como ela é, com aquela naturalidade que é muito típica da religião católica: para rezar e conviver, chorar as angústias e divertir-se, fazer súplicas e cantar, levantar as mãos para o Alto e, porventura namoriscar, sonhar com uma nova familiar ou solidificar a já constituída. Mas, de modo talvez mais intuído que explícito, o povo acorre porque vê n’Aquele que está por detrás da imagem um referencial de valores humanos e um âmbito de virtudes sobrenaturais que se sabem constituir referência segura e caminho certo para a realização da pessoa e da sociedade e para essa meta por todos ansiada que é a da felicidade.
De alguma maneira, isto já estava claro nos dois textos bíblicos que escutamos. O Evangelho reporta-se à primeira leitura, mas acrescenta algo de novo e determinante: não se nega que a Cruz de Cristo proteja a vida e a livre da morte biológica, como a cruz levantada no deserto como antídoto contra as mordeduras das serpentes. Porém, o que a Cruz do Calvário traz de novo é a colocação do Senhor frente a frente perante com quem para Ele olha e a consequente interrogação sobre o porquê disso. Ora, na resposta a esta pergunta, está explícito todo um núcleo ético significativo e um conjunto de referências morais: porque sem a meta da eternidade a vida das pessoas fica idêntica à dos animais; porque ser pessoa significa viver um amor de dádiva atá ao limite da vida; porque fazer o bem supõe quase sempre algum sofrimento e contínua generosidade; porque a fidelidade à consciência pode ter este desfecho; porque o esquecer-se de si para viver para os outros constitui a identidade mais profunda da natureza humana.
Sim, sei bem que os crentes do passado e nós, no presente, nem sempre somos exemplares na vivência desses valores e virtudes. Pelo contrário, por vezes parece subsistir uma radical contradição entre as expressões de alguma devoção e as atitudes da pessoa. Não ignoramos que, não obstante a pessoa pedir a proteção divina, frequentemente gera más relações com os outros, prejudica-os no bom nome ou nos bens, instaura o ódio, semeia a desavença, cria violência, enfim, contradiz o que pede para si. Não obstante, a pessoa sabe que o exemplo perfeito de tudo o que é bom, é o Senhor Jesus. Mesmo que o não cumpra. Mas que fica sempre como ânsia, como aspiração, como nostalgia do bem. Sabe que, n’Ele, o ódio dos perseguidores pode ser remido pelo amor, que a generosidade e a dedicação podem ser elevados ao grau máximo, que a grandeza de ânimo e a o perdão são sempre possíveis, que o encanto da vida é bem superior à morte e que para nos dar vida e vida de qualidade, aceitou a cruz. Que, a partir daí, o limite da dedicação aos outros é o não haver limites.
Ora, a cultura dominante atual, dita pós-moderna, cortou fortemente com este paradigma de ver Jesus como exemplar dos critérios morais. Mas se O não temos como referencial, como o homem novo, modelo de todo o homem plenamente realizado, onde vamos buscar o protótipo? Num passado relativamente recente, acreditou-se piamente que o homem novo se construía a partir das propostas das ideologias. E estas tiveram imensos seguidores que lhe hipotecaram as suas razões de existir. Mas depressa se descobriu que as ideologias só fazem vítimas, que têm sangue a escorrer das suas mãos, que milhões e milhões foram cruelmente sacrificados por causa e em nome delas. E entraram em crise e desapareceram com a rapidez com que foram artificialmente criadas.
Desaparecidas as ideologias, aonde ir procurar o tal paradigma do homem novo? Pois a cultura atual dá uma pronta resposta: cada um que o vá buscar a si mesmo. De facto, a pessoa deixou de contemplar um modelo fora de si e passou a fazer dos seus quereres e interesses, apetites e emoções, sentimentos e turbulências, a razão última do seu viver. Na prática, transportou-se para a subjetividade o que, pela natureza das coisas, diz respeito à objetividade, pois só assim é social.
Desta forma e para aqueles que seguem este esquema -que não é a sociedade toda, como é óbvio, e graças a Deus-, a moral tornou-se uma ética das situações, o bem e o mal passou a coincidir com o apetite, os princípios orientadores foram taxados de coisas ridículas, as grandes ânsias sociais desapareceram. É o reino do individualismo, entendido como desprezo das normas e dos critérios, particularmente, dos tradicionais.
Nesta fragmentação da ética e do civismo, esperava-se que interviessem positivamente os grandes dirigentes sociais, de forma especial, a organização da vivência em sociedade, que é a política. Mas não. Infelizmente, não ousa afrontar o abaixamento generalizado. Quase sempre se contenta com aquele rasteiro carpe diem horaciano, à base daquilo que se definiu como o “politicamente correto” e que se poderia traduzir em algo como isto: “Já que me quereis, aqui estou para fazer a vossa vontade”.
Obviamente, não estou a pensar apenas em Portugal. Refiro-me antes ao dito Primeiro Mundo, e em particular à Europa. Neste abaixamento das perspetivas morais até ao humanamente insustentável, parece estar a inverter-se a noção de bem e de mal. Só assim se compreende o que ouvimos com desgraçada frequência: que o aborto é uma irreversível conquista da modernidade; que se deve instituir o divórcio na hora quando o casamento supõe muita burocracia e as empresas demoram de três a cinco anos a constituir; que se deve promover a escolha do sexo biológico e psicológico que se desejar, desde a mais tenra adolescência, ainda que isso vá trazer situações de divisão interior gravíssimas a curto prazo; que só nos falta a eutanásia para sermos desenvolvidíssimos, ainda que quase um quarto da população viva abaixo do limiar da pobreza e os velhinhos só não estejam mais ao abandono porque muitas instituições de solidariedade social -fundamentalmente, as da Igreja- conseguem fazer o “milagre” de cobrir dois terços dos custos que o Estado não cobre; que a violência estrutural se resolve com mais tecnologias e não com a formação do caráter; que as Escolas existem para a desestruturação e não para a unidade psicossocial, etc.
Com isto, não se pense que advogo um retorno ao passado, como se ele fosse melhor que o presente. Este nosso tempo possui coisas maravilhosas e imensas oportunidades. Este é um tempo dado por Deus, expressão do seu amor. Esta é uma época de graça. Porém, o que se pretende é que, em nome de uma ingenuidade capciosa e de projetos nem sempre claros, não se hipoteque o futuro, não se instaura a anarquia moral, não se quebrem as relações sociais gratificantes, não se desestruture a sociedade. Até porque se isto desaparece, fica apenas a força da lei imposta pela baioneta. E muitos de nós não o queremos nem o toleraremos.
Porque é que o nosso povo chama “Bom” a Jesus, ao “Bom Jesus de Matosinhos”? Não só porque se habituou a esperar d’Ele graças e favores, mas também porque vê imensa bondade e beleza no seu estilo de vida e paradigma de toda a pessoa humanizada. Caros fiéis, perante a atual cultura da negação, do niilismo e da indiferença, incutamos nós a cultura dos valores, da solidariedade comprometente, do absoluto respeito e presença junto de todas as fragilidades, da graça, da elevação, da espiritualidade. E nós os que acreditamos nesta escala de valores, cidadãos na plenitude dos nossos direitos como os demais cidadãos, não deixaremos de usar a nossa inteligência para, com calma, mas também com forte convicção, continuarmos a afirmar que o Natal é mesmo a festa do nascimento do Menino Jesus e não uma qualquer festa de amizade; que os verdadeiros padrinhos são os que testemunham os sacramentos da Igreja e não convencionalismos sociais; que mandaremos dar uma volta a organismos do Estado quando, a pretexto de um qualquer protocolo, pretende ordenar que se retirem os crucifixos dos quartos dos idosos de um Lar da própria Igreja, quando nos impingem a morte como coisa boa.
Para nós, o Bom Jesus é a nossa referência. Nascemos a ouvir chama-l’O, fomos batizados em seu nome, crescemos com a o crucifixo nas nossas casas, temo-l’O sempre na mente e no coração e esperamos que a sua imagem no acompanhe até à última morada. Porque estamos unidos a Ele, proclamamos: “Bom Jesus, só tu és Salvador”.
+ Manuel Linda