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COMPREENDO E ACEITO

 

O primado da presença solícita

Homilia nas Ordenações de Presbíteros, em 2022

 

Escutamos estes sugestivos textos bíblicos a respeito dos critérios de salvação que Deus nos oferece. No tempo de Moisés, era lógico que o acento se colocasse no cumprimento da lei escrita, qual parâmetro concreto para a existência crente. Entretanto, sem desprezar essa vertente, já se apelava àquela interioridade, onde a voz de Deus se escuta e a consciência apela à ação: “[A voz de Deus] não está para além dos mares… Esta palavra está perto de ti, está na tua boca e no teu coração, para que a possas pôr em prática”. A resposta à grande interrogativa da salvação está, de facto, nas Escrituras. Mas também na consciência bem formada. E se muitos não conhecem a primeira, potencialmente, todos são dotados da segunda. Por isso, a proposta de salvação é universal. É para todos.

Com a sua sábia pedagogia, o Senhor Jesus confirma esse âmbito da revelação, mas vai mais longe: viver e operar de acordo com os ditames da consciência é condição de compreender. No diálogo com o doutor da Lei, o Salvador remete para a Sagrada Escritura. Mas, para aquele, tudo são dúvidas. Então, com o exemplo da parábola, faz ver que a obra salvífica se encontra na ação que resulta do encontro entre o apelo da realidade e a decisão da consciência. A verdadeira ortodoxia da lei verifica-se na ortopráxis da boa ação. É esta que nos obriga a aproximar-nos, sem preconceitos. E é ela, também, que nos conduz à avaliação do bem maior, pois o serviço à pessoa supera o simples mantimento da pureza legal de não tocar em sangue, como era o caso do sacerdote e do levita.

Para nós, seus seguidores, o Revelador do Pai, faz-nos compreender que a verdadeira lei não está tanto na Toráh, quanto na proximidade e no calor humano; que a fuga à dor e aos sentimentos dos outros é fuga de nós mesmos e de Deus; que, em cristianismo, jamais pode haver divisão entre o corpo da fé e o corpo da vida, a mente e a atuação, o conhecimento de Deus e a misericórdia. Passar ao lado dos outros sem lhes estender a mão, mesmo que invocando um qualquer superior primado ou uma qualquer outra urgência, é sempre praticar um arremedo de religião, mas nunca servir o Senhor, presente nos irmãos.

Caros quase-novos sacerdotes e todos os outros que o já são, nunca passeis à margem do povo que vos é confiado. Nunca troqueis a solicitude de proximidade por ideias abstratas e efémeras, ainda que tocadas pelos ventos das modas culturais do momento. Nunca viajeis por imaginários doentios da fuga à realidade e ao compromisso com aqueles em função dos quais recebeis o Sacramento da Ordem, não para a demarcação de uma zona de conforto vossa, mas para o serviço sacerdotal dos cristãos e mesmo dos outros homens e mulheres que buscam, ainda que sem o saberem. E, o que é pior, nunca sigais por caminhos alternativos apenas para que o vosso percurso não se cruze com os irmãos a quem sois enviados.

O segredo da beleza e do encanto do ministério ordenado passa por esta proximidade sentimental e familiaridade existencial ao povo de Deus. Para isto, há descobertas a fazer e atitudes a tomar. Umas de cariz eminentemente negativo; outras, pela positividade. Quanto às primeiras, peço-vos: não cultueis ao luxo e à ostentação, pois estes são os vícios que o povo menos suporta; não cultiveis a sombra da fuga, pois se o Padre não está com os seus, estes também não podem estar com o seu Pároco; não faleis do alto da vossa importância, pois o bom senso diz-nos que isso fratura e o princípio de sinodalidade reconhece que todos somos fiéis em Cristo e igualmente responsáveis pela Sua Igreja. No sentido positivo, também peço: estai no mundo, mesmo que sem ser do mundo, no sentido de estar presente àquelas realidades por onde se movem as pessoas e a sociedade; sede líderes e guias espirituais que incentivam e congregam, pois, a este mundo que tende a satisfazer a sua ânsia de salvação e plenitude na técnica cada vez mais refinada, é preciso lembrar-lhe que as realidades finitas jamais conseguirão satisfazer o anelo de vida infinita; enfim, amai muito uma Igreja que não possui estradas próprias, mas caminha pelas vias também calcorreadas pelos outros homens e mulheres para falar a todos, penetrar no coração de todos, ajudar a todos e, nesta babel atual, exprimir-se na única linguagem do amor. Uma Igreja que, como mãe amorosa, se aproxima, escuta, vê e se deixa ferir pelos sofrimentos daqueles que encontra nas estradas da vida.

Nesta linha da vizinhança operativa junto do nosso povo, permiti-me mais uma palavra. Sei bem que a história não se repete. É da sua essência construir-se e não repetir-se. Até porque, mesmo da parte do clero, as condições atuais são outras e mais difíceis que as do passado, pois os sacerdotes antigos não tinham de pastorear, ao mesmo tempo, cinco ou seis Paróquias e com uma multiplicidade de atividades desconhecidas naquela altura. Pensemos na preparação para os sacramentos ou na direção dos Centros Sociais Paroquiais. De facto, a comparação entre o hoje dos Párocos e o passado dos seus colegas é meramente aproximativa.

Vemos por aí que se atribuiu o nome de muitos sacerdotes a ruas e praças, se esculpiram os seus bustos ou estátuas, que vários deles penetraram tanto no coração dos seus fregueses que ainda hoje lá vive a sua memória, não obstante terem falecido há tantos anos. Porquê? Porque, verdadeiramente, se irmanaram com os seus paroquianos e os serviram no acolhimento e na simpatia. Porque os estimavam, sentiam gosto naquilo que era típico do povo. Por isso, encabeçaram comissões de melhoramentos; obrigaram os poderes públicos a dotar as populações com os equipamentos de estradas, eletricidade e água; publicaram monografias do lugar e investigaram os topónimos; integraram os órgãos dirigentes dos clubes desportivos e associações locais; organizaram programas turísticos e recreativos, etc. Enfim, viveram plenamente com o povo e para o povo. E o povo familiarizou-se com eles, a ponto de saborear a profundidade da palavra «Padre», pai, ou «Abade», paizinho.

Caros ordenandos, sei bem que sois dotados dos mesmos desejos de servir o povo de Deus. E sei bem que o povo de Deus conserva os mesmos sentimentos de afeto, familiaridade e agradecimento pelo bem que se lhe faz. Então, acolhei-o no vosso coração para que também ele vos acolha no seu. Não vos esqueçais: na matemática da vida, um é menos que um; um mais um, é bem mais que dois.

Peço a Deus a sua bênção para cada um de vós. Peço-a por intercessão da Virgem Santa Maria, exemplo perfeito do acolhimento de Jesus e do mundo para quem ela O trouxe.

 

 

Manuel Linda, Bispo do Porto 10 de julho de 2022