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COMPREENDO E ACEITO

Para a tutela da «alma» de Portugal

 (Missa do Dia do EMGFA – 10/07/2022)

 

Agradeço ao Ex.mo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas a escolha desta cidade episcopal para esta celebração, a primeira nestes moldes, fora de Lisboa. Sei bem que, para isso, não foi indiferente a simpatia que dedica às gentes do Norte e ao atual Bispo do Porto, mercê da sua antiga função castrense. Agradeço. Da minha parte, também posso garantir que é muito elevada a consideração e estima em que tenho as Chefias e os homens e mulheres que dão corpo à defesa nacional. Entretanto, para além deste dado, que me sensibiliza, há toda uma história que sustenta esta efeméride, a justifica e quase a impõe.

Após a conclusão do arranjo urbanístico do Terreiro da Sé, verdadeiro centro cívico e um dos locais mais belos e emblemáticos da cidade do Porto, em 1947, a Câmara Municipal mandou gravar uma inscrição que se encontra diante desta catedral. É possível ler nela: “No dia 17 de junho de 1147, o Bispo do Porto, D. Pedro Pitões pregou neste lugar aos cruzados, exortando-os a auxiliar D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa, empresa em que devotamente participou”.

A mundividência era a do século XII. Não obstante toda a mudança de mentalidade que oitocentos anos de história de evolução das ideias e de civilização proporcionou, sublinha-se o que parece ser indiscutível: a Igreja captou bem a aspiração de liberdade e a vontade de autonomia dos cavaleiros e população do Condado Portucalense e, face a um quase inexistente exército organizado, soube despertar e congregar a ajuda dos Cruzados, força indispensável para a tarefa a empreender. E a partir do Portus Cale, fronteira entre a Galécia e a Lusitânia, gradualmente, foi-se edificando um projeto de Nação, constituída não só pelo alargamento territorial, mas também pela evolução do tecido social, com o restauro das dioceses, construção de infraestruturas, relançamento da agricultura e do comércio marítimo, criação das escolas catedralícias e monásticas que conduziriam naturalmente à Universidade, diplomacia junto da Santa Sé, etc. E este querer unânime, esta vontade coletiva, tornou-se um processo tão comummente participado que se identificou com o nome do lugar onde surgiu. E o Portus Cale confundiu-se com Portugal.

Como todas as realidades humanas, a Nação portuguesa tem pais: a Igreja e as Forças Armadas, bem treinadas nos Cruzados e quase amadoras nos populares de Entre Douro e Minho. É nestes que, a justo título, são de incluir os «pais fundadores»: Afonso Henriques, Egas Moniz, Gonçalo Mendes da Maia, Lourenço Viegas de Ribadouro, e tantos, tantos outros, lídimos continuadores das aspirações de um Vímara Peres ou da Condessa Mumadona. Mas não menos os eclesiásticos. Destes, têm de ser mencionados, com igual destaque, um S. Bernardo de Claraval que assegurou a ajuda dos Cruzados; esses mesmos monges militares; D. Hugo, iniciador desta catedral e arquiteto das estruturas urbanas; o já referido D. Pedro Pitões; D. João Peculiar; os arcebispos de Braga; S. Teotónio, conselheiro e diretor espiritual de D. Afonso Henriques; e muitíssimos outros sem os quais Portugal não passaria de um sonho. A propósito: alegra-me que o Comando de Pessoal do Exército tenha, recentemente, escolhido S. Teotónio para seu Patrono.

Refiro isto para vincar que tem raízes a árvore plena de vida e aberta ao futuro que hoje somos. Se lhas cortassem, corria perigo de vida. A atual cultura de massas afina, um pouco, por aqueles velhos complexos adolescentes de Édipo e Electra: não valoriza e até contesta estes sustentáculos do organismo e fontes dos seus nutrientes. Mas são elas quem garante vitalidade e abertura ao futuro, quando alguma erosão e fracionamento social, por ingenuidade ou desconstru-tivismo, parecem apontar para a via sem saída da dissolução ou da não-pertença.

Ninguém julgue, porém, que com isto estou a advogar umas Forças Armadas de monges, como os Cruzados, ou alguma confusão entre o que é típico delas e a missão da Igreja. A autonomia das realidades terrenas é um dado adquirido e saudado pelo Concílio Vaticano II. Também não advogo um qualquer militarismo, no sentido negativo que a história atribuiu a esta palavra. Mas, porque não atingimos a plenitude da fraternidade, qualquer pessoa de bom senso sabe que os valores da segurança, da liberdade e da paz reclamam, em larga medida, Forças Armadas que os defendam, garantam e promovam. Entre nós e no mundo, pois a célebre frase de Caim –“A mim que me importa?”- é indigna de uma humanidade fraterna e de uma cultura que, sendo global, supõe responsabilidades globais. Nesta linha, quero ressaltar o brilhante contributo das Forças Armadas portuguesas para as muitas missões de paz por esse mundo fora. Parabéns e obrigado.

Esta celebração insere-se nas comemorações do desembarque do Mindelo, a 8 de julho de 1832, e da tomada da cidade do Porto, no dia seguinte e consequente instauração do liberalismo. Nem sempre foi fácil a coexistência entre o mundo da fé e esta visão política, ao tempo, forte novidade. Temia-se alguma hostilidade, aliás verificada na extinção das Ordens Religiosas, e a absolutização do indivíduo, o que, entre outros aspetos, conduziu ao liberalismo económico e à consequente inexistência de quaisquer laços de solidariedade. Mas a Igreja crê piamente na liberdade pessoal e social, pois sem ela nem há dignidade de consciência nem sociedade adulta. E agradece aos liberais a instauração do sistema democrático e a defesa dos direitos humanos, mesmo antes da sua formulação em 1948. Precisamente por isto, Forças Armadas e Igreja estão do mesmo lado na defesa acérrima de uma liberdade que exprima a sublime dignidade de toda a pessoa humana, edifique laços recíprocos regidos pela verdade e pela justiça e, enfim, dote a sociedade da capacidade de recusa de tudo o que é moralmente negativo, seja qual for a forma em que se apresente, já que a plenitude da liberdade não consiste no exercício arbitrário e incontrolado da absoluta autonomia pessoal, mas na capacidade de dispor de si em vista do autêntico bem, no horizonte do bem comum universal (DSI 200).

A Igreja celebra hoje São Bento que viveu entre 480 e 547, uma época de profundas mudanças sociais com o fim da Antiguidade e cedência de lugar à Idade Média, com a queda do Império Romano. Deixou a profissão política de Tribuno e fundou o primeiro Mosteiro do Ocidente, em Montecassino. Escreveu uma Regra de vida que viria a abrir uma nova via à civilização europeia, pois concilia harmoniosamente o louvor divino com o trabalho cultural e braçal, num clima de caridade fraterna e de serviço recíproco. Todos já ouviram falar do seu ora et labora, reza e trabalha. Por isto, costuma-se dizer que deu uma alma, uma fisionomia a uma Europa que historicamente, ao longo de séculos e séculos, era perfeitamente tribal. Mesmo sem o pressentir, lançou as bases de uma Europa unida. Razão pela qual foi declarado Patrono da Europa.

Hoje, neste tempo de globalização, quando carecemos dos elementos que tradicionalmente congregavam a vontade coletiva num projeto unitário –língua e religião comuns, carga genética e determinação de futuro, geografia e laços sociais- é preciso que não falhem os grandes suportes que deram lastro a esta bela construção da portugalidade: Igreja e Forças Armadas. Não para colhermos especiais louros. Mas por responsabilidade ética, pois ainda há muito a fazer em prol da liberdade, da justiça social e do bem comum. Para usar o conhecido verso do grande Fernando Pessoa, ainda “falta cumprir-se Portugal”.

A exemplo de S. Bento, construtor da unidade em liberdade a partir da diversidade assumida e valorizada, a fé e a ação constituam o referencial último para os cidadãos de Portugal. Mas, muito mais, para os membros das suas Forças Armadas, pois a fé é e será sempre expressão do sacrifício suportado pelo bem comum, do amor doado, da paz estabelecida com o próprio sangue. Numa palavra: de salvação. É o que eu peço a Deus por intermédio de São Nuno Álvares Pereira, Patrono do EMGFA, e de Nossa Senhora da Vandoma, Padroeira desta cidade e expressão do universalismo dos seus habitantes a quem o contacto com as diversas gentes solidificou os valores da cooperação, da liberdade e da paz.

+ Manuel, Bispo do Porto

 

Foto: Presidência da República