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COMPREENDO E ACEITO

 

Só o mesmo pão gera uma família

 

A Igreja exerce o múnus de santificar mediante as diversas ações litúrgicas. Entre elas, os sete Sacramentos ocupam lugar cimeiro. Devota a todos um especial apreço e veneração. Mas só o da Eucaristia recebe o qualificativo habitual de «santíssimo»: o Santíssimo Sacramento, aquele em que não se recebe somente uma específica graça para uma particular situação, mas se reatualiza a obra redentora e salvadora do próprio Senhor, como supremo culto de louvor e de ação de graças ao Pai, mediante o Espírito.

Por isso, historicamente, quase se identificou Eucaristia com vida crente. E as normas da Igreja mandam ao bispo que “onde for possível, para testemunhar publicamente a veneração para com a santíssima Eucaristia, faça-se uma procissão pelas vias públicas, sobretudo na solenidade do Corpo e Sangue de Cristo” (Cân. 944). É o que faremos à tarde, se Deus quiser, dando seguimento a uma tradição que nos vem, pelo menos, do século XIII e, em Portugal, se tornou obrigatória em 1282, envolvendo o clero, mas não menos as administrações públicas, os diversos atores sociais e todo o povo que se associava com manifestações artísticas que ainda perduram.

Para compreendermos o “sentido da fé” que lhe subjaz, gostava de acentuar duas ideias. Uma retirada do Evangelho. No diálogo entre Jesus e os judeus, chama-me a atenção o uso do verbo «dar». O Salvador insiste: “O pão que Eu hei de dar é a minha Carne, que Eu darei pela vida do mundo”. Mas os interlocutores não compreendem a excelência da dádiva. Por isso interrogam-se: “Como pode Ele dar-nos a sua Carne a comer?”. É que eles deram-se conta de que não se trataria de dar um simples exemplo, uma referência vaga, mas sim a sua própria Pessoa.

É, de facto, a Pessoa e os critérios de Jesus que está em causa. A sua economia não passa pelo verbo ter, mas sim pelo dar. Dar-nos a sua Carne é o mesmo que transferir para nós, os comensais ou comungantes, a sua natureza divina, a sua plenitude humana, a sua preocupação pelo bem social. Dar a sua Carne e o seu Sangue é comprometer-nos na sua unção de pregar o Evangelho aos pobres proclamar a libertação aos oprimidos, dar vista aos cegos, dar pão a quem tem fome. É edificar uma verdadeira família humana a partir do Pão comum, pois partir o pão à mesma mesa é sinal e fundamento de família unida.

Para mais, trata-se do Pão verdadeiramente saudável ou salvífico. Sabemos que a saúde ou a doença dependem, em grande medida, do género de alimentação que fazemos. Se nos alimentamos de ódios e divisões, o que se gera é o cancro social e outras doenças degenerativas. Mas se nos alimentamos com o Pão da harmonia, então é a fraternidade, o cuidado, a solicitude, a união e a colaboração que se criam. E há tanta carência de saúde social mormente a nível dos velhinhos desamparados, dos não produtivos desprezados, dos frágeis desprotegidos, dos jovens abandonados à sua sorte, de tanta gente explorada indecentemente. Sem pessimismos doentios, parece que no atual ciclo económico e cultural, a sociedade está a tornar-se uma espécie de cidade de sonâmbulos, autómatos carentes de amor e solicitude.

Um segundo pensamento é retirado da primeira leitura. Os estudiosos da Bíblia chamam a atenção ao seu contexto: o povo vivia em época de prosperidade e de paz, os produtos da terra e o resultado do comércio eram abundantes, a vida social estava organizada. Neste contexto, como acontecia em períodos semelhantes, o povo corria o risco de se centrar nos bens materiais e esquecer Deus. É então que Moisés alerta: “Recorda-te de todo o caminho que o Senhor teu Deus te fez percorrer durante quarenta anos no deserto”. Em concreto, que havia a recordar? A fraqueza e a debilidade das pessoas e do povo que não teriam sobrevivido sem a ação providente e misericordiosa de Deus e a oferta do maná, alimento indispensável onde só havia vento e areia.

Curiosamente, o centro da palavra «recordar» é a latina cor-cordis, coração. Então, recordar, no sentido bíblico, não é somente ter uma memória apurada, mas fazer descer ao coração um acontecimento ou ação divina que a inteligência retém. Neste caso, é saber manter-se em clima de louvor e agradecimento pelo facto histórico da intervenção maravilhosa de Deus perante as agruras do deserto e do êxodo.

Lido em chave de atualidade, também eu diria que é preciso que a pessoa do nosso tempo não se absorva em exclusivo nos prodígios tecnológicos e na abundância de bens que Deus coloca ao nosso dispor para ultrapassarmos o «deserto» da existência, mas que o seu coração se dê conta de que, em última análise, tudo provem do Alto. E que, hoje, não somos beneficiários apenas de um maná alimentício, mas do próprio Senhor do Universo, plenitude da vida e da eternidade, princípio e meta de tudo. Como seria bom que, em particular, os meninos e as meninas que realizam hoje ou por estes dias a sua primeira comunhão se dessem conta deste mistério e lhe fossem sempre fiéis!

Devido à abertura que o Santo Padre nos concedeu, vamos avançar para a instituição dos ministérios do catequista, do leitor e do acólito. Não para premiar colaborações ou agradecer favores. Mas para formar para a grandeza deste mistério eucarístico, para a Igreja crescer na história como Corpo de Cristo e Sacramento de unidade e para prosseguir a obra da Redenção, segundo o mandato missionário do seu Senhor e Mestre. Para que o povo dos batizados, na Eucaristia, se alimente e cresça como corpo eclesial, verdadeiro Corpo de Cristo presente à face da terra.

Caros fiéis em Cristo, prezemos este “Santíssimo Sacramento”. Abeiremo-nos dele e ajudemos os outros também a aproximarem-se. E que se cumpram as palavras da Sequência: “Aos mortais dando comida/Dais também o pão da vida:/Que a família assim nutrida/Seja um dia reunida/Aos convivas lá do Céu”.

 

 

Manuel Linda, Bispo do Porto 08 de junho de 2023