Um Pão para partilhar
Há anos, num dia como este, comentando o mesmo Evangelho que escutamos, o Papa Francisco acentuava os três grandes símbolos da narrativa da instituição da Eucaristia, segundo São Marcos: a bilha de água que serviria de sinal aos Discípulos para encontrarem a casa de acolhimento, a sala grande no piso mais nobre e o gesto de Jesus partir o Pão. Também eu vou usar estes sinais para uma reflexão sobre o Sacramento da Eucaristia a quem, habitualmente, chamamos “Santíssimo”: o Santíssimo Sacramento.
No Evangelho proclamado, dizia-se, de facto, que quando encontrassem um homem com uma bilha de água, o seguissem e lhe perguntassem onde é que o Mestre poderia cumprir o rito da ceia pascal judaica. Parece algo sem qualquer interesse. Mas a bilha com água representa o ato de satisfazer o organismo e não deixar morrer desidratada uma humanidade sequiosa, sempre à procura de uma nascente que mate a sede e regenere. É a sede de amor, de carinho, de encorajamento, de ânimo, de alegria, de espiritualidade, de ânsia de um mundo mais humano e humanizado.
Daqui, uma constatação: para celebrar a Eucaristia é preciso ter sede de Deus, não se contentar com o ritmo sombrio dos dias vividos na penumbra da vida. Ora, como diria o Papa, o drama de hoje é que muitos não se dão conta, sequer, desta sede: já estão num processo de desidratação tal que nem sentem os efeitos da falta de água.
A segunda imagem é a sala para a ceia pascal, que o evangelista descreve como “grande e no andar superior”. Trata-se, certamente, de uma sala arrumada, com os móveis indispensáveis, mas não com aquele exagero de coisas que nos distraem do essencial e nos atafulham o coração, a ponto de lá não haver mais lugar para Deus e para os outros. Nesta sala grande, entra um pequeno pedaço de pão. Tão pequeno e que ainda se vai subdividir mais! Esta sala é a imagem de um coração –e até da própria Igreja enquanto tal- que se limpa da falta de solidariedade, dos ressentimentos, dos ruídos, para dar espaço à admiração, ao assombro, à contemplação, à adoração.
Sem esta limpeza do nosso espaço interior, não cabe o Pão da Vida, embora de aspeto bem pequenino. Não se veem os raios de luz que dele emanam, não se acede ao mistério. O mesmo se diga da Igreja: os nossos planos pastorais, as muitas reuniões por motivos disto e daquilo, o desejo de sinodalidade, sem a Eucaristia e a adoração, não passam de um corpo doente, cada vez mais degradado, que se movimenta apenas por automatismos. A Igreja terá de ser a sala grande da contemplação, mas também do acolhimento dos feridos pela vida, dos sequiosos pelos desenganos, dos cansados porque seguiram caminhos longos e pedregosos. A Igreja ou será esta sala grande que a todos conduz a este encontro com Cristo, saciador de todas as fomes e de todas as sedes, ou não acredita na sua catolicidade, isto é, na sua abertura ao mundo, grande condição para o salvar.
Finalmente, o terceiro símbolo: o gesto de partir o pão. Não sabemos o tamanho desse pão que foi dividido e do qual todos comeram. Devia ser pequeno, como era típico da cultura semítica. Mas Jesus já estava habituado a, do pouco, fazer muito. Pensemos, por exemplo, na multiplicação dos pães e dos peixes: de sete pães e alguns peixes, matou a fome a cinco mil homens. Como? Dividindo, fazendo pedacinhos a partir da unidade daquele alimento. Era assim que se fazia com os sacrifícios do antigo templo de Jerusalém: pegava-se nos vitelos e cordeiro, novos e sem defeito –o melhor do que se possuía- e, depois de os matar, dividiam-se em bocados para mais facilmente se queimar a carne. Mas agora, no Cenáculo, é Jesus quem se despedaça, dilacera, como iria acontecer no Calvário. Por isso garante aos seus discípulos: “Isto é o meu corpo. Este é o cálice do meu sangue derramado por vós e por todos”.
A partir deste gesto, o alimentar-se da Eucaristia, mas, simultaneamente, o repartir, o condividir, o partilhar torna-se o gesto identitário da nossa fé. Não há outro superior. É o gesto do supremo amor que reclama, da nossa parte, semelhantes gestos de amor. Verdadeiramente, não celebra a Eucaristia quem não abre o coração aos irmãos, particularmente aos mais sofredores, quem não dá pão aos esfomeados do corpo ou da alma, quem não assume como seus os sofrimentos dos necessitados.
É este Pão da Vida que aqui nos reúne. Ele não é um simples produto de consumo, mas recurso de partilha. Aliás, a economia de Jesus é muito diferente da do mundo. Neste, valoriza-se o lucro e a voracidade. A economia de Jesus fomenta a partilha, alimenta distribuindo, sacia dividindo por todos. Não conjuga o verbo ter, mas sim o dar.
A cidade dos homens, hoje, é carente de carinho e presença amorosa junto dos velhinhos, de afagos e sorrisos, de reconhecimento da dignidade dos trabalhadores mais humildes, de solidariedade para com os jovens que dificilmente conseguem ganhar o pão para alimentar os seus sonhos, de compromisso com as dificuldades de muitas famílias, de respeito para com os migrantes explorados. E de muita presença junto de dores que bem conhecemos. É para aí que o Senhor nos envia. Precisamos de um novo alimento, uma nova cultura, um novo humanismo que nutra a vida fraterna do mundo. E esse pão só pode ser um: este Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Jesus.
+ Manuel Linda 30 de maio de 2024