No aniversário da dedicação da Catedral
O sinal de que Deus habita no meio de nós
Eusébio de Cesareia, que viveu provavelmente entre cerca dos anos 265 e 339, conheceu bem a época das ferozes perseguições aos cristãos e também a paz de Constantino, pois foi contemporâneo das duas. Historiador segundo os critérios da época, não deixa de nos transmitir informações fundamentalíssimas para compreendermos o cristianismo antigo. Por isso, é mesmo chamado “o pai da história da Igreja”.
A respeito da dedicação ao serviço religioso dos novos edifícios que só puderam ser construídos a partir de 313, ano em que Imperador concedeu a liberdade aos cristãos, escreve: “Teve, então, lugar um espetáculo por todos auspiciado e desejado: festas da dedicação, em cada cidade, consagração de Igrejas de nova construção, reuniões, por este motivo, de bispos, ajuntamento de muita gente, até de regiões afastadas e mesmo estrangeiros, sentimentos de amizade de um povo para com outro, união dos membros do Corpo de Cristo, numa mesma harmonia de participação”.
Hoje, aqui no Porto, se não acorrem gentes de muito longe e do estrangeiro, temos aqui muitos bispos, cuja presença agradeço e um grupo que representa a totalidade da Diocese e exprime os sentimentos de alegria, de amizade, de harmonia entre os membros do Corpo de Cristo de que falava Eusébio de Cesareia. Neste espírito, gostava de chamar a atenção a alguns dados teológicos, aliás, presentes nas leituras bíblicas que escutamos.
Começo com o valor simbólico deste edifício, a nossa Sé: não é um cárcere para aprisionar Deus, mas o sinal de que Ele habita no meio de nós. O povo bíblico, com fortes raízes nómadas, durante séculos e séculos, não teve qualquer templo. E agora, o judaísmo, também não tem. Deus, de facto, não precisa de construções materiais para estar perto de nós, pois o universo inteiro é a sua morada. Na passagem pelo deserto, havia uma tenda dedicada a Deus (hekal) que se armava e desarmava e deslocava de um lugar para o outro, tal como a totalidade das tendas das diversas tribos. Eis, pois, um Deus peregrino, que deixa pegadas no caminho juntamente com as do seu povo. Um Deus próximo, que comparte a vida da sua «família» humana. Como hoje: a forte presença de Deus é nas nossas vidas, para se alegrar connosco e limpar as nossas lágrimas.
Depois, há que redescobrir o significado destes nossos edifícios. A sua razão de ser provém do facto de, no seu interior, se escutar a Palavra que se faz vida e se celebrar o mistério pascal. O templo cristão é Cristo. A Sagrada Escritura remete sempre para esta ideia essencial: para o «novo corpo» que tem Jesus por cabeça. É isso que resumimos naquele cântico conhecidíssimo: “Nós somos as pedras vivas do templo do Senhor”.
O terceiro dado que gostava de referir é a estreita interligação entre o cristão e este templo a que chamamos igreja. Sabemos que, originariamente, a palavra igreja (ecclésia) significava tão-somente uma assembleia reunida. Com o andar dos tempos, entrou-se numa tal afinidade que o lugar de reunião passou a ser designado com o mesmo nome da assembleia, sem, porém, se deixar de aplicar às duas polaridades: às pessoas e ao local da sua reunião. S. Paulo já apontava para aí quando dizia: “Vós sois o tempo de Deus” (1 Cor, 3, 16). Então, a igreja é para ser usada pela assembleia e não há assembleia crente se não usar o templo, a igreja, que, de outra forma, ficaria um monumento mudo. Comemorar a dedicação da nossa Sé é também comprometer os crentes diocesanos no seu uso frequente, pois são eles os verdadeiros membros da assembleia eclesial.
Para além desta teologia, gostava de chamar a atenção a um dado histórico. A primitiva igreja românica, à qual pertence grande parte deste edifício, e de quem comemoramos o aniversário da dedicação, terá sido contruída a partir do primeiro quartel do século XII. Era a afirmação de uma fé sólida, mas também de uma cidade e de uma liberdade que seriam coroadas com a independência de Portugal. Ao mesmo tempo, reconstruiam-se as velhas muralhas romanas, erradamente conhecidas por «muralhas Suevas», à volta da Sé e de mais uns poucos hectares, num perímetro não superior a 750 metros. Veja-se o que era a nossa cidade, naquele tempo, e o que é hoje.
Essas muralhas ditavam a diferença entre a vida e a morte dos seus habitantes, a sua segurança ou insegurança, enfim, o seu bem-estar ou mal-estar. Hoje, precisamos igualmente de bem-estar. Só que este nunca mais se conseguirá com muralhas, mas com o coração generoso e corresponsável pelo irmão. Precisamos de um espírito fraterno no acolhimento dos migrantes, da sua integração, do respeito por eles. Como precisamos de nos dedicar mais, muito mais, ao mundo da toxicodependência, dos sem-abrigo, da solidão dos velhinhos, do respeito pelos que ainda habitam este centro histórico, de um olhar atento aos carenciados, de uma corresponsabilização perante a natureza e o urbanismo. É com alegria que vejo os cristãos darem um imenso contributo nestas áreas. Aos Párocos e seus paroquianos, às Ordens Terceiras e demais instituições congéneres, à Misericórdia e a tantos organismos idênticos, o meu profundo agradecimento.
Comecei por citar Eusébio de Cesareia e o que nos diz sobre a dedicação das igrejas: que exprimiam a “união dos membros do Corpo de Cristo, numa mesma harmonia de participação”. É o que se espera nos nossos dias: esta Catedral seja sempre a casa da harmonia entre os crentes do Porto. E, por isso, a amem e a frequentem cada vez mais. Deus não está somente nela. Mas ela funciona com símbolo da sua presença deste Deus-companheiro no meio do seu povo.
+ Manuel Linda 9 de setembro de 2024