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COMPREENDO E ACEITO

Coroar de espiritualidade a matéria do mundo

 

Manda a liturgia que se comemore o aniversário da dedicação das Sés e Igrejas paroquiais, tal como fazemos com o nosso dia de anos. E essa celebração tem a categoria de “festa” ou até de “solenidade”, como é o caso, agora. Deve contar com a participação do maior número possível de fiéis, ser presidida pelo bispo ou pelo Pároco, haver sinais exteriores de alegria e entoar-se o hino de “Glória”. Trata-se de uma recordação «obrigatória» que se sobrepõe a outros festejos como possíveis memórias dos santos, por exemplo.

Mas o que é a dedicação e donde vem este hábito piedoso? Dedicar um espaço ou objeto religioso a Deus é o mesmo que o declarar exclusivo para o serviço divino. Nesta catedral, por exemplo, cabe a dimensão cultural, artística, museológica. Em caso de cataclismo, poderia ser transformada em espaço de refúgio ou refeitório de emergência. Mas isso apenas em caso de extrema necessidade. O que, praticamente, nunca se verificou e, se Deus quiser, nunca acontecerá. Para a cultura e para o exercício habitual da caridade havemos de conseguir outros espaços mais apropriados. Aqui não. Este é primordialmente para o louvor divino. Até porque a disposição dos diversos materiais objetos criam um tal ambiente espiritual que o configuram como ideal para escutar o recado, a mensagem, que Deus tem para o homem. É por isso que, anualmente, recordamos o dia em que atribuímos ao serviço exclusivo de Deus uma partícula pequena do que Ele mesmo nos dá e que a cultura e a técnica de tantos elevou como espaço belo e emblemático. Como espaço digno de simbolizar este intercâmbio entre o divino e o humano.

Uma igreja, de facto, é sempre uma nota de poesia na prosa bárbara das nossas vidas. É um espaço de silêncio e interioridade no meio do bulício e dispersão da forma como tecemos a existência. É uma possibilidade de olhar para a construção e reconhecer que esta se apresenta como sentinela do divino, como chamada de atenção, contínua lembrança para que não nos esquecermos que, por cima de nós, está Deus. É também, de alguma maneira, como que a representação de mãos postas, mãos erguidas da «cidade dos homens» na direção da «cidade de Deus». É despertador das nossas consciências, recordando que é possível a santidade no meio das desordens morais, individuais e coletivas. É, enfim, o lugar dos afetos e dos sentimentos, pois neste espaço se vertem lágrimas de alegria num casamento e lágrimas de dor num funeral, exprime-se a ternura do encanto de um batismo ou primeira comunhão e a angústia de quem pede afincadamente uma graça.

Tudo isto é que reclama que este espaço seja diferente, único. Como tal, depois da dedicação, chamamos-lhe «espaço sagrado». De facto, nós, os cristãos, não construímos igrejas para deixar marcas de civilização nem para afirmarmos um qualquer poder: fazemo-lo porque estas construções, as igrejas ou templos, constituem uma imagem da nossa vida da fé e mesmo da relação da graça divina connosco e de nós com Deus. A primeira leitura, por exemplo, apresentava essa linda metáfora do templo como nascente de uma água viva que gera mais vida e, fundamentalmente, mais qualidade de vida: “Aonde esta água chegar, as outras águas tornar-se-ão sãs e haverá vida por toda a parte. [À sua beira crescerão árvores cujos] frutos servirão de alimento e as folhas de remédio”. E o Evangelho remete-nos para a ideia de que esta casa é o lugar onde acolhemos Deus e Deus nos acolhe: foi na sua casa, transformada em templo ou igreja, que Zaqueu acolheu Jesus. Mas é lá que Jesus o acolhe no reino de Deus ao garantir-lhe que “a salvação chegou a esta casa, porque o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido”. Daqui a passagem para a ideia que dá forma a toda a segunda leitura: estas casas lembram-nos o necessário acolhimento de Cristo já não só dentro das suas paredes de pedra ou cimento, mas no sacrário mais íntimo que é o nosso coração. A ponto de se poder perguntar como S. Paulo: “Não sabeis que sois templos do Espírito Santo e que o Espírito de Deus habita em vós’”.

É aqui que reside o grande mistério e o segredo do nosso relacionamento com o divino: sermos ou não sermos os templos vivos de Deus. E muitos não querem ser. Foi assim em todos os tempos, mas torna-se mais visível no nosso. Queremos Deus perto de nós, como polícia a quem recorrer se nos sentimos atacados pela desgraça. Mas, na nossa casa e, muito mais, no nosso coração, podem entrar cães e gatos, cobras e lagartos, mas Deus… fica à porta. Que Deus habite na igreja, muito bem: Ele lá está para quando eu precisar, como o médico está nas urgências; mas que habite em nós, isso não, porque, assim, eu imagino que sou mais livre e que, dessa forma, posso fazer o bem ou o mal que me apetecer. É a terrível dicotomia fé/vida. O que, na prática, representa um voltar as costas a Deus. É isso: queremos igrejas belas e solenes e queremos meter lá Deus; mas nós não queremos ser templos onde Deus habite!

Porém, temos o exemp lo de Alguém que não procedeu assim: é a Bem-aventurada Virgem Maria, por sinal, Padroeira desta igreja catedral. Ela não se preocupou por arranjar um «templozinho» para Deus: trouxe-O sempre consigo. Na Anunciação, o Anjo ressalta isso mesmo ao dizer: “Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é [ou está] convosco”. Isso é que faz d’Ela diferente de toda a gente, a “bendita entre as mulheres”: porque Deus está sempre com Ela e Ela está sempre com Deus. Sempre! Quando as coisas correm mal, como por exemplo, quando é preciso fugir para o Egipto, e quando há triunfo, como quando enormes multidões seguem Jesus. Está com Jesus e Jesus está com Ela na ternura do nascimento, mesmo que tenha sido num presépio, e na dor do Calvário; na incompreensão das palavras de Simeão que lhe anuncia uma “espada de dor” e na manhã dos aleluias da Páscoa.

Que esta catedral, onde celebramos os momentos cimeiros da vida religiosa da Diocese, continue como metáfora do verdadeiro templo onde Deus quer habitar: em nós, no nosso coração, na nossa vida. Edificado bem no alto deste morro da Pena Ventosa, seja expressão de uma cidade viva e dinâmica que sabe levantar as mãos para Deus e receber d’Ele a fé, a esperança e a caridade com as quais se humaniza e se torna ainda mais aberta e solidária.

 

Manuel Linda, Bispo do Porto 09 de setembro de 2020