POLITICA DE COOKIES
Utilizamos cookies para assegurar que lhe fornecemos a melhor experiência na nossa página web. Ao continuar a navegar consideramos que aceita o seu uso.
COMPREENDO E ACEITO

 

 

“Não deve ser assim entre vós”

 

A síntese desta liturgia da Palavra de Deus, agora acabada de proclamar, pode ser encontrada na frase com a qual o Senhor Jesus faz a contraposição entre os critérios do mundo e os do Reino de Deus: “Não deve ser assim entre vós”.

De facto, os filhos de Zebedeu, Tiago e João, aproveitam-se da mentalidade comum para fazerem um pedido, meter uma cunha: obterem os dois lugares de mais destaque num futuro governo a constituir-se depois da libertação da Palestina. Como tal, um lugar de domínio: colocados bem no alto da estrutura da fama e do poder, separar-se-iam do povo anónimo pela importância e pela autoridade. E os outros discípulos também não viviam uma escala de valores muito mais elevada: os seus ciúmes e inveja conduziriam à fratura e ao desentendimento.

Porém, com a sua sábia pedagogia, o Mestre faz-lhes ver que o Reino a implantar não se estrutura à base dos falsos valores, assumidos quase como inultrapassáveis por serem tão habituais, mas numa nova visão em que os conceitos dominantes passam a ser a proximidade, o serviço, a disponibilidade para aceitar a mudança, a coesão do grupo que se reúne à volta d’Ele, o deixar as velhas seguranças e embarcar na promessa, a preocupação com que ninguém fique para trás, enfim, a aceitação do próprio sofrimento da incompreensão e o eventual martírio. Tal como o “servo sofredor”, já acenado em Isaías e concretizado em Jesus Cristo, Aquele que não coloca o centro de gravidade em si mesmo, nos seus caprichos e manias, mas em Deus e nos outros.

Do mesmo modo a Igreja: jamais poderá ser fermento desse Reino se não se questionar sobre o seu presente, chamado a desaparecer, e se ele projeta ou não para um futuro a edificar na correspondência ao plano de Deus e no qual ela conte menos para que somente os outros e o Grande Outro contem tudo. Uma Igreja chamada a discernir o que tem de fazer para que seja mais Igreja, a semente frutifique e o mundo seja salvo.

As razões do próximo Sínodo entroncam aqui. Por isso, se os outros Sínodos foram sempre sobre uma determinada temática parcelar e se debruçaram sobre aspetos que, na maioria das vezes, diziam respeito à Igreja e ao mundo, este é diferente, pois não estuda setores, mas critérios e atitudes do seu próprio funcionamento.

Este grande objetivo já estava presente nas razões do Vaticano II, quando o “bom” Papa João lhe indicou o mote: “Igreja, que dizes de ti mesma?”. E o Concílio, de facto, constituiu uma resposta. Porém, a nossa vertente intelectualista levou-nos a «estudá-lo» como objeto fora de nós, a apreciá-lo e a criticá-lo, mas não a implicar nele as nossas atitudes. O problema não está, portanto, no Concílio, mas na sua receção: desde os idealistas que outra coisa dele não conhecem que não seja a ideia vaga de que «mudou tudo na Igreja», até aos integristas que fincam os pés à parede e o recusam liminarmente.

Este Sínodo interliga-se com o Concílio e a efusão do Espírito que ele representou. Na oração e na inteligência, vai ajudar a discernir um novo modelo de Igreja para este terceiro milénio. E creio bem que não poderá ser outro que não seja o que dá lastro à eclesiologia conciliar: superar a dimensão piramidal, expressa em conceitos de superioridade/inferioridade ou de responsabilidade/desinteresse, e passar à lógica da necessidade recíproca e da igual dignidade de todos os que constituem o povo de Deus.

O Papa Francisco, grande presente que Deus fez à sua Igreja neste tempo em que ela passa por um especial calvário e angústia, indica-nos a envolvência que há de caracterizar o Sínodo nas suas fases. A começar por esta diocesana: comunhão participação, missão. Desejo ardentemente que a nossa Diocese do Porto se situe dentro desta moldura geral e nunca a perca de vista. E que a leve até às últimas consequências. Para ser mais Diocese. Para ser mais Igreja. Interroguemo-nos, pois.

Comunhão. O clero é constituído por “Pastores com cheiro a ovelha”? Os leigos conhecem os seus Pastores e exprimem-lhes simpatia? Relacionam-se mutuamente em clima de fraternidade ou ainda se vive uma «luta de classes» já morta e enterrada noutros domínios? Usam-se as redes sociais para fomentar o clericalismo e o anticlericalismo ou para solidificar o sentimento de pertença à mesma realidade? Como se faz a integração dos afastados? Nas paróquias, movimentos e obras sintonizamos mesmo com o plano pastoral diocesano? Os movimentos e correntes de espiritualidade constituem um enriquecimento de propostas comprovadas ao serviço de uma Igreja mais fiel à sua origem ou imaginam-se as únicas células válidas para todo o corpo?

Participação. Por intermédio da totalidade dos seus membros, a Igreja é mesmo esta casa de família edificada no meio dos seus filhos? Todos os cristãos participam na pastoral e vida da Igreja? Sentem-se envolvidos responsavelmente numa obra que é de todos? Somos uma Igreja de diálogo recíproco ou unidirecional de comando/obediência? Assumimos que os ministérios e os serviços, mesmo os ordenados, arrancam da condição de pertença ao mesmo povo e para serviço desse povo ou fraturamos esta base? A problemática vocacional diz respeito a cada um, às famílias e a todo o povo de Deus?

Missão. Pelo exemplo e pelo testemunho, preocupamo-nos com o crescimento da Igreja em qualidade e quantidade? Vivemos como nossos os êxitos e os dramas da Igreja? Aflige-nos ou não o sabermos que, em muitas zonas, a Igreja é perseguida e martirizada? Que contributo damos para minimizar esse sofrimento? Assumimos ou não a necessidade de uma conversão pastoral em chave missionária e ecuménica? Formamos ou não a fé para podermos intentar um diálogo cultural com setores que, quase sempre, agridem a Igreja por ignorância religiosa ou desconhecimento básico? Falamos da fé, mormente a nível da família, da paróquia e organismos eclesiais? «Damos a cara» pela Igreja?

Caros irmãos na fé e na comum pertença à Igreja, o Papa Francisco tem-nos chamado a atenção para este dado: a fase de consulta do Sínodo não é igual à organização de um simpósio cultural ou a uma qualquer análise sociológica sobre as propostas das maiorias e das minorias. É antes um profundo exame de consciência, perante o Senhor e perante os irmãos na fé, realizado em contexto de oração, adoração e fervor. É isto mesmo que eu peço a todos e a cada um, particularmente no vosso contexto paroquial, familiar e de inserção no mundo. Mas de uma forma especial, à Comissão diocesana que agora «emposso» e a quem peço muito e muito trabalho para animar a todos e profundo discernimento para nos ajudar a inserir no espírito do Sínodo, particularmente nesta fase de consulta.

Com a bela oração com que se costumam abrir os Concílios e Sínodos e usado em todas as sessões do Vaticano II, também eu rezo em nome de todos vós: “Espírito Santo! Eis-nos aqui, diante de Vós, reunidos em vosso Nome. Nosso defensor, vinde, ficai connosco; tomai posse do nosso coração. Mostrai-nos o destino, caminhai connosco, conservando-nos em comunhão. Iluminai a nossa ignorância, libertai-nos da parcialidade. Amém”.

 

 

Manuel Linda, Bispo do Porto 17 de outubro de 2021