No sufrágio pelos ministros ordenados – 2022
Um ministério de humildade e união
O ministério ordenado começa com uma palavra e um gesto. À nomeação daquele que receberá o sacramento, responde-se: “presente” ou “eis-me aqui”. E, passado pouco tempo, prostrar-se-á por terra enquanto se cantam as ladainhas e se faz a oração conclusiva. É uma forma de tomada de consciência daquilo que se opera do ordinando. Assim acontece em cada um dos três graus do Sacramento da Ordem. Por isso, se o Diácono se prostra apenas uma vez, o Presbítero vai a terra duas vezes e o Bispo três.
Vai por sua livre vontade. Até ao dia do seu próprio funeral. Então, como corolário e pleno cumprimento do gesto inicial, também é pousado na terra. Sinal eloquente de quem se esvaziou para se dar aos outros. Ultimamente, de facto, nos funerais dos ministros ordenados, introduziu-se o significativo gesto de colocar a urna no chão, sem qualquer alcatifa ou suporte. E isso fala por si.
O clero e os diáconos são os homens que têm de ir muitas vezes a terra. São aqueles que, em opção livre, compreendem que ministério quer dizer serviço e serviço particularmente difícil. Sempre o foi, em qualquer época da história. Mas nas últimas décadas, sabemos bem que o martírio tornou-se o grande horizonte que envolve a missão da Igreja e dos seus mais diretos servidores. O drama, porém, é que muitas vezes esse sofrimento é causado no interior da comunidade crente. O que o torna mais duro e acutilante.
Na primeira leitura, escutamos a mágoa de S. Paulo por causa dos abusos introduzidos na liturgia eucarística celebrada na comunidade de Corinto. Espanta como, em poucos anos –menos de vinte- se tenha decaído da beleza de uma fraternidade sedimentada em Cristo à balbúrdia do individualismo mais feroz que não só não se preocupa com o irmão como, porventura, até o afrontará como concorrente a abater. É neste contexto que o evangelizador se sente obrigado a anunciar a palavra da verdade: a afirmação de que a Eucaristia é mistério de união e, nela, o Senhor nos associa à sua morte, “até que Ele venha”. Mistério de união plena e na dupla direção: do crente com o seu Senhor e dos crentes entre si.
O meu antecessor, o sempre saudosamente lembrado por todos nós, D. António Francisco, experimentou bem o que é o sofrimento causado pela divisão no interior da comunidade crente, as contínuas infidelidades de tantos que não contribuem para a unidade, mas, consciente ou inconscientemente, a ferem por atos e atitudes desagregadoras. E este foi o motivo do seu sofrimento maior. Por certo, não foram as aleivosias dos que estão fora, pois deles não se esperava outra coisa, mesmo que, agora, dissimuladamente, lhe louvem a memória. O grande aperto do coração que o levou ao desenlace final foi, certamente, a angústia de não ver cimentada a unidade que ele tanto prezava. Senhores bispos, padres e diáconos, honremos-lhe a memória fazendo desta uma Diocese sem fissuras, solidamente unida e buscadora das mesmas metas.
Curiosamente, se a primeira leitura deixava transparecer a mágoa da divisão, o Evangelho é exemplar na apresentação de um caso de boa convivência e harmonia social. O centurião romano que pediu a Jesus a cura do seu servo era originário de outra cultura e fé. Não obstante, não só tinha compaixão de um escravo –coisa absolutamente rara na mentalidade do tempo- como ousou ir ter com Jesus, procedendo a um diálogo inter-religioso entre o paganismo de origem e a afirmação do Messias como único rosto autêntico do Deus verdadeiro. Os próprios judeus, sempre tão desconfiados e sectários no confronto com os romanos opressores, reconheciam a bondade deste homem: “Ele é digno de que lho concedas, pois estima a nossa gente e até foi ele que nos construiu a sinagoga”. Do mesmo modo, o senhor D. António Francisco e todos aqueles que agora lembramos também encontraram, muitas vezes, mais simpatia e conforto fora do âmbito da comunidade crente do que entre alguns dos seus membros.
Comecei esta homilia referindo o gesto de nos lançarmos por terra no contexto do Sacramento da Ordem. Para quem não acredita na vida eterna, a morte será a prostração máxima e definitiva. Não assim para nós. Associados ao Senhor Jesus pelo Batismo temos a certeza de que se cumpre o que tantas vezes anunciamos: “É digna de fé esta palavra: Se morremos com Cristo, também com Ele viveremos” (2 Tm 2, 11). O amor de Deus não desilude. E o Deus em Quem acreditamos é misericórdia e piedade. Para aqueles que agora recordamos, à luz do mistério pascal, pedimos o ingresso na plenitude da vida. Para nós, a graça da alegria de continuarmos a exercer, sem sombra de desânimo, um serviço ministerial que, tantas vezes, ronda o martírio. Mas também a de nos comprometermos numa unidade total, pois o único cancro que pode enfraquecer a Igreja é o perigo dos divisionismos e a sua desunião.
Manuel Linda, Bispo do Porto 12 de setembro de 2022