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Para uma liturgia do espanto

Chama-me a atenção o desassossego demonstrado pelos Apóstolos aquando desta aparição do Ressuscitado, relatada pelo Evangelho: “Espantados e cheios de medo, julgavam ver um espírito. […] Disse-lhes Jesus: «Porque estais perturbados e porque se levantam esses pensamentos nos vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo”. É neste contexto, a partir da visão das marcas dos cravos, do meter a mão na chaga aberta pela lança do soldado e no ato tão rotineiro da alimentação, que o Senhor como que os faz centrar-se na realidade, descer à terra e tomar consciência de que é possível o encontro entre o Sobrenatural e a natureza.

Rigorosamente, o que gerou esta confusão não foi a falta de fé daqueles onze discípulos. Foi antes, como acentua o texto, a sua alegria e contentamento por voltarem a ver o Amigo em quem tinham depositado toda a sua confiança. De facto, como muito bem ressalta o Papa Francisco, era tal a alegria que quase não podiam crer que aquilo fosse verdade. Estavam espantados porque o encontro com Deus leva sempre ao pasmo, ao assombro, ao deslumbramento. Ultrapassa o próprio entusiasmo, a alegria, e transforma-se numa outra e distinta experiência. É o fascínio da presença de Deus, é a mística que, por momentos, como que separa o crente da realidade sensorial.

A presença de Deus no seu crente caracteriza-se sempre por um misto de presença e saída, de assentamento na realidade circundante e de transcendência para a sobre-natureza. O mesmo se diga da presença do mistério do divino já não só a nível do individual, mas, muito mais, quando se trata da assembleia orante, do povo de Deus participante da ação litúrgica e, de algum modo, concelebrante, no exercício do seu sacerdócio comum dos fiéis.

É neste contexto que entra a música, como capacitação para a ascensão ao encontro do Deus que chega, como fusão mística de um sobrenatural glorioso que envolve a nossa pobre natureza caduca e muito limitada, como fomento de um estado de ânimo de libertação e deslumbramento. O Concílio Vaticano II já o havia dito na Constituição sobre a Sagrada Liturgia: “O canto sagrado, intimamente unido com o texto, constitui parte necessária ou integrante da Liturgia. […] A música sacra será, por isso, tanto mais santa quanto mais intimamente unida estiver à ação litúrgica” (SC 112).

A música litúrgica, portanto, não existe primordialmente para tornar a celebração mais festiva e solene, para ocupar esteticamente alguns momentos dos nossos dias tão prosaicos, para atrair um público melómano e, assim, encher as igrejas. Se a música litúrgica é parte integrante da liturgia, quer dizer que ela, pela sua própria natureza, já é liturgia, celebração, ação transformante, veículo para o contacto com o Mistério sempre assombroso, fascinante e encantador. Não se trata, portanto, de algo externo e apenso ao rito, mas potenciador do contacto que recria a realização e manifestação do Mistério da Salvação,ora manifestando sentimentos de louvor, de súplica ou também de tristeza pela experiência da dor humana, experiência porém que a fé abre à perspetiva da esperança cristã”, como escreveu S. João Paulo II (22/11/2003).

Nesta perspetiva, a música litúrgica tem por missão favorecer e não afastar a comunidade orante, evitando os dois extremos: aqueles cânticos meramente sentimentais, carregados de uma emoção que facilmente se desvanece, e aquele requinte sectário

que esteja muito para lá do horizonte litúrgico habitualmente experimentado pela comunidade, embora sempre na perspetiva da educação da sensibilidade.

Daqui a importância da formação: quer daqueles que exercem o santo ministério da música na ação litúrgica, quer da assembleia orante, até para que esta não se limite à escolha do que mais «agrada», num péssimo nivelamento por baixo. Especialmente, há que formar os jovens para que a música litúrgica se torne uma linguagem de forte comunicação com o Transcendente e mesmo com o irmão que com ele celebra o Mistério e não mais imaginem que as emoções só podem chegar pelo cançonetismo comercial. A Liturgia é uma “arte verdadeira”, como referiu São Paulo VI (18/09/1968), pois só assim se pode exprimir o mistério que nos envolve e assombra. Isto não significa que se use sempre um reportório complexo, difícil, muito para lá da sensibilidade cultural e eclesial dos fiéis. Mas que, a partir da realidade, num contínuo esforço de educação do sentimento, todos tomem consciência do valor e da importância da música no celebrar cristão, mediante a participação ativa do maior número de fiéis.

Por aquilo que, ao longo destes cinquenta anos, o Curso de Música Litúrgica do nosso Centro de Cultura Católica tem feito, dou graças a Deus e um profundo agradecimento aos formadores, formados e formandos.

 

 

+ Manuel Linda 14 de abril de 2024